domingo, 6 de novembro de 2022

Embates, decisões e protagonismo

 

    Em 2019, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, o Supremo Tribunal Federal equiparou, em termos penais, a prática do discurso de ódio denominado homofobia ao racismo. Em um país majoritariamente conservador e estruturalmente preconceituoso nas mais diversas esferas, a decisão do STF foi histórica no combate à toda forma de discriminação e manutenção do princípio constitucional da igualdade. Entretanto, justamente tendo como base as características negativas citadas intrínsecas à nossa nação, surge o questionamento de como uma comunidade historicamente marginalizada vem alcançando reconhecimento nas esferas sociais e jurídica. A presente dissertação busca, à luz de diversos pensadores, analisar a luta da comunidade LGBTQIA+ e explicitar como ela tem sido a principal responsável para conquistar a implementação de direitos já positivados que, por negligência governamental, nem sempre são eficazes para essa parcela da sociedade.

        De início, sob a ótica de Pierre Bourdieu, vale ressaltar como a constante luta dessa camada vem alterando positivamente o espaço dos possíveis. Definido pelo sociólogo como tudo aquilo que se é realizável em um meio, o espaço dos possíveis é reflexo direto das dinâmicas sociais nele existentes, sendo estas, historicamente, as  mais intolerantes possíveis para com as minorias sexuais. Entretanto, o espaço dos possíveis é delimitado pelo campo jurídico. Tendo por base que o referido pensador considera o direito como a junção da lógica positiva da ciência com a lógica normativa da moral, observa-se que o direito não será algo estático, visto que os parâmetros que definem a moral tendem a variar de acordo com o tempo e espaço em que se inserem. Assim sendo, levando em conta que o espaço é o de um Estado democrático de direito e que vivemos em um tempo de constante reconhecimento de direitos graças ao conflito entre os marginalizados e a ordem homofóbica, é incabível a permanência de discursos discriminatórios de qualquer natureza.

            Após a análise do pensamento de Bourdieu no contexto citado, passemos agora para o estudo das ideias de Antonie Garapon. Para o jurista, a plenitude da democracia é alcançada ao rompermos as amarras impostas pelos denominados magistrados naturais – comportamentos típicos de uma ordem retrógrada, como o machismo e a homofobia – e recriar a organização social por meio do direito. Para superar os magistrados naturais, no entanto, é necessário que o sujeito exerça a magistratura de sua própria vida, ou seja, participe ativamente de batalhas que busquem o rompimento com a ordem natural. Nesse viés, nota-se como decisões como a ADO 26 não são frutos de um mero “paternalismo judicial”, mas sim de uma luta constante que reflete o protagonismo dos agentes oprimidos nessas conquistas. Ademais, ainda no quesito de romper com a ordem vigente, decisões judiciais devem colaborar com os embates sociais travados por meio da antecipação do direito, isto é, devem pensar o direito como uma ferramenta de transformação social e não como um instrumento que reproduza e legitime atitudes discriminatórias que já se encontram enraizadas em muitos cidadãos.

            Por fim, o foco da análise será agora o pensamento de Michael McCann a respeito do direito e sua função no meio em que está inserido. Consoante aos ensinamentos do professor, vivemos em um contexto marcado por um fenômeno denominado mobilização do direito. De acordo com seu conceito, essa é a mobilização dos próprios sujeitos de direito para reivindicar os próprios interesses. Alinhado ao conceito já apresentado de magistratura do sujeito, ocorre aqui uma transição na ideia dos tribunais como os principais garantidores e de direito, passando esse ofício para os agentes em si. Deste modo, mais uma vez se observa em como decisões judiciais, há exemplo da ADO analisa, são frutos principalmente de um cenário de instabilidades geradas por aqueles que reclamam seus direitos básicos e uma ordem de caráter opressora. Tais mobilizações exercem influência primeiramente no chamado nível estratégico, ao pressionar autoridades judicias para que providências sejam tomadas, e, posteriormente, em nível constitutivo, que passa a adotar os decretos proferidos como parte da vida cotidiana – ou, caso haja resistência, há desde pressões exercidas pelo meio para exigir mudanças comportamentais até consequências penais.

            Mediante a minuciosa exploração dos diferentes conceitos apresentados, concluo reafirmando: decisões como a da ADO 26 são consequências diretas das lutas travadas pela comunidade LGBTQIA+. Ao pressionar a sociedade como um todo, os agentes sociais adquirem influência necessária para alterar os parâmetros do espaço dos possíveis e, por conseguinte, superar os magistrados naturais, fato que seria impossível sem a organização pela mobilização do direito e suas consequências na esfera social, política e jurídica. Somente respeitando as reivindicações das minorias atingiremos a plenitude de nossa democracia e cumpriremos a verdadeira função do direito.

Mateus G. F. de Souza
Turma XXXIX - Matutino

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