domingo, 20 de novembro de 2022

Ecos de 1888

 

    Por decreto da Lei no 3.353, de 13 de maio de 1888, a chamada “Lei Áurea”, a escravidão foi formalmente extinta do Brasil. Contudo, a simples promulgação de uma lei não basta para a mudança de ideias fortemente enraizadas em uma sociedade, motivo pelo qual a discriminação contra a população negra perdurou – e ainda perdura. Somado a isso, a ausência de medidas estatais efetivas para a plena inserção dessa parcela na sociedade colaborou com a marginalização desta. O que se observa na contemporaneidade, portanto, é o reflexo da ausência de uma reparação histórica para com os negros.

     Nesse viés, observa-se atualmente, por mais que haja tentativa de busca pela reparação, o mantimento de uma ordem retrógrada e presa aos ideias meramente formais de igualdade. Há exemplo disso, cita-se a ação ajuizada ao Supremo Tribunal Federal por parte do partido Democratas (DEM) questionando a validade da implementação de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB), dando início ao debate da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186. Por unanimidade, o STF reconheceu a legitimidade da implementação de cotas raciais, futuramente resultando na Lei no 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas para o Ensino Superior. A presente dissertação busca, à luz do pensamento de diversos sociólogos, juristas e filósofos, analisar a importância da decisão do STF para o equilíbrio de um Estado Democrático de Direito.

    De início, sob a ótica de Pierre Bourdieu, vale ressaltar como a constante luta dessa camada vem alterando positivamente o espaço dos possíveis. Definido pelo sociólogo como tudo aquilo que se é realizável em um meio, o espaço dos possíveis é reflexo direto das dinâmicas sociais nele existentes, sendo estas, historicamente, as  mais intolerantes possíveis para com as minorias raciais. Entretanto, o espaço dos possíveis é delimitado pelo campo jurídico. Tendo por base que o referido pensador considera o direito como a junção da lógica positiva da ciência com a lógica normativa da moral, observa-se que o direito não será algo estático, visto que os parâmetros que definem a moral tendem a variar de acordo com o tempo e espaço em que se inserem. Assim sendo, levando em conta que o espaço é o de um Estado Democrático de Direito e que vivemos em um tempo de constante reconhecimento de direitos graças ao conflito entre os marginalizados e a ordem racista, é incabível a permanência de um sistema de seleção que dê privilégios para pessoas brancas – considerando que estas, historicamente, ocupam maior espaço em escolas particulares e outras instituições de ensino de superior qualidade quando comparadas aos espaços ocupados pela população negra.

    Após a análise do pensamento de Bourdieu no contexto citado, passemos agora para o estudo das ideias de Antonie Garapon. Para o jurista, a plenitude da democracia é alcançada ao rompermos as amarras impostas pelos denominados magistrados naturais – comportamentos típicos de uma ordem retrógrada, como o machismo, a homofobia e o racismo – e recriar a organização social por meio do direito. Para superar os magistrados naturais, no entanto, é necessário que o sujeito exerça a magistratura de sua própria vida, ou seja, participe ativamente de batalhas que busquem o rompimento com a ordem natural. Nesse viés, nota-se que decisões como a do STF a respeito da ADPF 186 não são frutos de um mero “paternalismo judicial”, mas sim de uma luta constante que reflete o protagonismo dos agentes oprimidos nessas conquistas. Ademais, ainda no quesito de romper com a ordem vigente, decisões judiciais devem colaborar com os embates sociais travados por meio da antecipação do direito, isto é, devem pensar o direito como uma ferramenta de transformação social e não como um instrumento que reproduza e legitime atitudes discriminatórias que já se encontram enraizadas em muitos cidadãos.

     Por fim, o foco da análise será agora o pensamento de Michael McCann a respeito do direito e sua função no meio em que está inserido. Consoante aos ensinamentos do professor, vivemos em um contexto marcado por um fenômeno denominado mobilização do direito. De acordo com seu conceito, essa é a mobilização dos próprios sujeitos de direito para reivindicar seus  interesses. Alinhado ao conceito já apresentado de magistratura do sujeito, ocorre aqui uma transição na ideia dos tribunais como os principais garantidores de direito, passando esse ofício para os agentes em si. Deste modo, mais uma vez se observa em como decisões judiciais, há exemplo da ADPF analisada, são frutos principalmente de um cenário de instabilidades geradas por aqueles que reclamam seus direitos básicos e uma ordem de caráter opressora. Tais mobilizações exercem influência primeiramente no chamado nível estratégico, ao pressionar autoridades judiciais para que providências sejam tomadas, e, posteriormente, em nível constitutivo, que passa a adotar os decretos proferidos como parte da vida cotidiana – ou, caso haja resistência, há desde pressões exercidas pelo meio para exigir mudanças comportamentais até consequências penais.

    Em suma, observa-se que, por conta de um processo de abolição de escravidão mal realizado e por conta da ausência de métodos de inserção social, a população negra está sujeita a diferenças de oportunidades ainda nos dias atuais, sendo necessárias medidas reparatórias como a prevista pela Lei de Cotas para alcançar a verdadeira igualdade prevista pela Constituição. Deste modo, concluo reafirmando: decisões como a da ADPF 186 são consequências diretas das lutas travadas pela comunidade oprimida. Ao pressionar a sociedade como um todo, os agentes sociais adquirem influência necessária para alterar os parâmetros do espaço dos possíveis e, por conseguinte, superar os magistrados naturais, fato que seria impossível sem a organização pela mobilização do direito e suas consequências na esfera social, política e jurídica. Somente respeitando as reivindicações das minorias atingiremos a plenitude de nossa democracia e cumpriremos a verdadeira função do direito.

Mateus G. F. de Souza
Turma XXXIX - Matutino

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