segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Direito após Stonewall

   Michael McCann, ao admitir a crescente participação judicial nas decisões políticas, concebe a mobilização do Direito. Para o autor, nesta situação em que o Judiciário assume questões que não são tradicionalmente colocadas sob sua alçada, em função expansiva, não há como negar acréscimo de poder aos Tribunais. Contudo, a natureza desse poder é complexa. Então, encaixa-se o conceito, de McCann, de que as ações judiciais, com aspectos políticos, são “ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores”. Nesse sentido, grupos afetados ou interessados articulam-se com o Direito, travam discussões em Cortes, fazem uso de mecanismos institucionais para assegurar a efetivação de direitos, obter certo bem. Na visão de McCann, os Tribunais são sim um vínculo institucional, um indicador da disputa, dão sinais e traçam as relações do caso concreto, entretanto, os atores mais relevantes são os que apelam, fazem uso da Justiça e brigam pela demanda. Como afirma o sociólogo, “os usuários da Justiça se engajam em uma mobilização do Direito”. O que pede Michael McCann é que os cidadãos não sejam esquecidos do processo de conquistas sociais e obtenção de bens jurídicos, em troca de um protagonismo só do Poder Judiciário, porém, que a sociedade civil seja contemplada como parte ativa da disputa judicial, em suas altercações e manifestações. O autor compreende, por fim, que o Judiciário mais interventor pode ser positivo à democracia, caso o faça em prol da equidade e da Justiça social, a partir do engajamento cívico.

Cabe um olhar sobre a ADO 26, decisão marcante do Supremo Tribunal Federal, para compará-la com a teoria de McCann, para avaliar o seu teor e importância. O STF, na ADO 26, decide pela criminalização de condutas homofóbicas ou transfóbicas. O fundamento é o seguinte: a Constituição Federal determina mandamentos de criminalização nos incisos XLI e XLII do Art. 5º; o Legislativo não agiu nesse respeito em tempo hábil; consequentemente, os indivíduos LGBTQIA+ têm seus direitos fundamentais ofendidos. O inciso XLI do Art. 5º da CF define: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. O inciso XLII do Art. 5º define: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Para, assim, criminalizar as condutas homofóbicas ou transfóbicas, o Min. Celso de Mello constatou que a LGBTfobia tinha de ser equiparada ao crime de racismo, já enquadrado na Lei 7.716 de 1989. 

A razão pela qual a equiparação é lógica consiste da conceituação de raça não como biológica ou fenotípica, contudo, como acepção relacional-histórica. Isto é, a raça é determinada de acordo com o que é fixado pela realidade e pelo imaginário social a cada momento, de modo que uma categoria impõe-se como “normal” e superior à outra, e através de ideologização, trata o indivíduo “diferente” de si como recriminável e subalterno, como “naturalmente” marginalizado. Esse processo, da opressão e da degradação do outro, é o que constituiria o racismo, não restrito à etnia ou cor da pele, mas aplicável às formas históricas de discriminação. A percepção explicada encontra amparo tanto na jurisprudência do STF, no caso Ellwanger (HC 82.424/RS), quanto na literatura antirracista, utilizada pelo Min. Celso de Mello na situação. Há demais princípios da Constituição que podem ser tomados neste mérito. O princípio da tolerância e da diversidade, os quais são feridos pela impunidade de atitudes agressivas e discriminatórias; a inadmissibilidade do discurso de ódio, conforme consta na Convenção Americana de Direitos Humanos; o princípio da dignidade, que pede pela felicidade do indivíduo, autodeterminação e igualdade de tratamento, todas desrespeitadas mediante ofensas ou agressões homotransfóbicas.

A aplicação de McCann sobre a ADO 26 está no reconhecimento de que a decisão final não consiste de um resultado puramente estrito ao Tribunal e aos seus integrantes, mas que remete à luta de um segmento da população, de um grupo afetado, o qual pretende adquirir de forma resolutiva direitos. Dessa maneira, a população LGBTQIA+ é uma parte forte, engajada e resistente, que utiliza o Direito e as suas instituições, a fim de obter a igualdade, a paz e o respeito, e que articula constantemente para isso. Desde os conflitos, as agressões e a resiliência de Stonewall, há larga mobilização LGBTQIA+ para que ninguém seja discriminado, violentado ou desrespeitado em virtude de sua orientação sexual ou identidade de gênero, de modo que aqueles impactados pela violência e que insistentemente batalham por mudanças sociais jamais podem ser retirados das conquistas obtidas, em troca de uma valorização apenas do Tribunal na ADO 26. Então, a decisão foi de inegável importância ao Estado Democrático, por viabilizar o acesso da comunidade LGBTQIA+ aos direitos lhe prometidos em texto constitucional, por proteger uma minoria atacada com frequência, colocada em posição subalterna. Para utilizar da fórmula de Antoine Garapon, a maior autoridade do Judiciário foi necessária neste caso, a fim de solucionar um pendente conflito, de vulnerabilização de sujeitos, só remediado com a atuação da Justiça, que se impôs sobre a autonomia frágil dos cidadãos e agiu de maneira tutelar. Com a fórmula de Bourdieu, tratou-se de disputa de leituras no espaço dos possíveis, em que as forças progressistas e os indivíduos LGBTQIA+ saíram vitoriosos, não estando o Direito de jeito algum isolado das lutas e problemas da sociedade.

No conto Terça-feira gorda de Caio Fernando Abreu, dois homens envolvem-se romanticamente em um Carnaval. A prosa segue um tom melódico e frenético, carregado de desejo, emoção e euforia. Somente para, de forma súbita, sem antecipação do escritor, como em um susto, os personagens serem arrebatados por ataques, por ofensas vis e agressões, até que um deles é morto. Caio Fernando Abreu narra o seguinte: “fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois, as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos”. É bom citar o conto de Caio Fernando Abreu a fim de não retirar a história ou os rumos finais dela, de conquista e de progressão, daqueles que com ela sofrem e que nela estiveram inseridos. As lutas são reais, concretas e corpóreas, e a ADO 26 é um dos lugares em que descambam, para interromper a intolerância, a falta de equidade e a violência, seja física ou não. Que justificativa há para impedir um avanço civilizatório como esse, para impedir a progressão de direitos? Não há justificativa lúcida, respeitável, empática ou digna nem dentro da Constituição como fora dela. Contrariar o decidido, a criminalização de condutas homofóbicas ou transfóbicas, é negar a dignidade e a igualdade, quiçá a humanidade.

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