segunda-feira, 21 de novembro de 2022

  ADPF 186: o incômodo no enfrentamento ao cânone hegemônico


    A Arguição de Preceito Fundamental 186 foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal em 2009 pelo partido Democratas (DEM), com pedido liminar da eficácia quanto às ações afirmativas de cotas raciais instituídas inicialmente pela Universidade de Brasília (UnB). A posição adotada pelo Democratas foi fundamentada na ideia de que “[...] no Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro [...]”, argumentando que a política de cotas seria uma tentativa de segregação e imposição de um “tribunal racial”, visando o desmantelamento de uma suposta “identidade nacional”. Essa visão acabou por conflitar com o posicionamento de diversos amicus curiae, como o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), além da própria decisão (unânime) do STF, que decidiu pela constitucionalidade da política afirmativa e que, inclusive, recomendou a adoção desta por outras faculdades. A partir desse contraste entre as ideias, observa-se de forma evidente o conceito de “espaço dos possíveis”, desenvolvido por Bourdieu, em que se disputa o “poder de dizer o direito”. Nessa perspectiva, nota-se como os mesmos dispositivos constitucionais foram utilizados na defesa de lados antagônicos, já que o DEM fundamentou o pedido afirmando que as cotas violariam preceitos como a “dignidade humana” (art. 1º CF) e “igualdade” (art. 3º CF), fundamentos que os ministros entenderam, na verdade, como objetivos de proteção dessa política. Como destacado pela fala da própria ministra Rosa Weber: “[...] entendo que os princípios constitucionais apontados como violados [no pedido do DEM] são justamente os postulados que levam à total improcedência da ação”. Dessa forma, o que se altera é a mobilização de diferentes doutrinas no embasamento de cada interpretação, possibilitando o que é legítimo ou não no espaço dos possíveis: na fala do DEM, por exemplo, observa-se de forma evidente a influência do mito da chamada “democracia racial”, pensamento difundido por Gilberto Freyre no início do século XX de que o processo miscigenatório na formação do brasileira traria uma concepção racial diferente de outros países, como Estados Unidos, e permitiria um todo harmônico, de forma a inexistir racismo de forma institucionalizada- pensamento completamente superado pela atual literatura. Ainda quanto a questão de legitimidade, os ministros do Supremo buscaram racionalizar a aplicação do direito ao fundamentarem seus votos em aspectos como a necessidade material da igualdade, resguardada pela Constituição, como se observa por exemplo na argumentação tecida pelo relator Ministro Lewandowski: “[...] a adoção de tais políticas, que levam à superação de uma perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o próprio cerne do conceito de democracia”.

Como anteriormente observado, o caso não foi inicialmente motivado buscando uma garantia de direitos a determinado grupo social, mas tão somente por um partido que, a partir de distorções do conceito de igualdade, argumentou por uma suposta violação de direitos, não se podendo afirmar sob nenhum ângulo de análise por um “ativismo judicial”. O Judiciário, quando provocado por um agente externo a trazer uma pacificação ao caso, apenas exerceu seu papel decisório, acabando por refletir um dos conceitos elaborados por Garapon acerca do recente movimento de destaque dos tribunais na proteção do indivíduo (a “magistratura do sujeito”), protegendo garantias fundamentais e direitos adquiridos de grupos historicamente subalternos- nesse caso, estudantes negros e indígenas.

A partir desse caso, entendendo a mobilização do direito como a definida por McCann enquanto uma interação complexa de diversos agentes e grupos, percebe-se com essa ação uma tentativa de uma classe privilegiada em tentar evitar mudanças que conflitem com sua posição de conforto, cômoda. Esse movimento foi observado pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, um dos amicus curiae: “[antes de o sistema de cotas ser implementado] as universidades brasileiras estavam reservadas para a classe econômica mais abastada”. Com a mobilização de diversos outros atores sociais, sendo exemplo os sete amicus curiae que endossaram a decisão do tribunal, alcançou-se um cenário de institucionalização do direito às cotas. Com isso, observaram-se desdobramentos em âmbito estratégico, com um marco de precedente quanto a políticas de afirmação social raciais, assim como de âmbito constitutivo, sendo a Lei nº 12.711/2012, a chamada “Lei das Cotas”, consequência indireta dessa decisão. 

   Por fim, percebe-se como toda a argumentação do DEM foi formada a partir de uma defesa de ideais consolidados a partir das Revoluções Burguesas do século XVIII: uma ideia de igualdade formal, primazia do indivíduo e “meritocracia” liberal; uma epistemologia do norte. Essa reivindicação do aspecto aparentemente universalizante do direito forma um dos aspectos da monocultura dos saberes, eurocêntrico e fundado na modernidade, se sobrepondo e silenciando demais manifestações mesmo em um país diverso e estruturado nas desigualdades como o Brasil. Como trazido por Sara Araújo, percebe-se que somente com uma ecologia de direitos e justiças, com atenção às particularidades nacionais próprias e não uma mera transposição da realidade cultural e constitutiva de outros países, é possível que se confronte essa perspectiva formal e individualizante do direito, concebendo a diversidade de direitos e justiças e se alterando a realidade de manutenção de privilégios em detrimento ao acesso e condição digna de outros. Como trazido por Conceição Evaristo: “A gente sempre pergunta: quem tem o poder? Quem define esse cânone. As classes hegemônicas têm o poder [...] têm o poder de criar a sua representação e criar o seu discurso. [...] Mas hoje isso não se sustenta mais. Cada vez mais há escritas diversas, posicionamentos diversos, novas interpretações. Se antes o centro empurrava a periferia, hoje a periferia consegue tumultuar as bordas do centro. Mas as coisas só mudam mesmo a partir de quem está incomodado, porque quem está comodamente assentado admirando o que é canônico não vai mudar se não forem feitas determinadas exigências. E mesmo fazendo essas exigências é difícil.”¹


¹. MOREIRA, Carlos. “Conceição Evaristo: "Para dizer que temos democracia racial, a pessoa tem de ser alienada ou cínica". GZH Livros, 2018. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2018/05/conceicao-evaristo-para-dizer-que-temos-democracia-racial-a-pessoa-tem-de-ser-alienada-ou-cinica-cjhagfe8005rj01pa44crildm.html >. Acesso em: 20\11\2022.


Isabella Neves- 1º ano matutino


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