segunda-feira, 28 de novembro de 2022

ADPF 186 e o caminho para a materialização de um “dever-ser”

 

Em 2012 o STF julgou um de seus casos mais simbólicos, a ADPF 186. Ajuizada pelo partido Democratas (DEM), a arguição visava declarar inconstitucional uma política de cotas raciais recém adotada pela Universidade de Brasília (UnB), segundo o partido, ao reservar vagas em instituição pública com base no critério racial, a Universidade referida estaria descumprindo princípios fundamentais da constituição, dentre os quais especialmente o princípio da igualdade.

Mas o que é o princípio da igualdade na constituição? Seria a ideia liberal de que todos são plenamente iguais e, portanto, assim devem ser tratados? Uma análise rasa pode chegar a este raciocínio, mas ao analisar a fundo a principiologia jurídica e constitucional, vemos que não é “bem assim”. As normas são, em rude síntese, palavras escritas num texto legal que pela sua vigência e validade se materializam na ordem político-social de um estado, contudo, as normas não são simples frases, as normas expressam um “dever-ser” isto é, expressam pressupostos valorativos se pretende concretizar na realidade, no plano do “ser”.

Dessa forma se a norma exprime um “não matarás”, subentende-se que existe uma prática que se deseja extinguir (no caso, a do homicídio), de forma análoga, quando a Constituição de 88 consagra no famoso artigo quinto a frase “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” deseja o legislador afirmar categoricamente que o Brasil é um paraíso onde a isonomia jurídica impera e não há preconceitos de natureza alguma? Quem dera o fosse. O princípio da igualdade não exprime um “ser”, exprime um “dever-ser”, ou seja, a Constituição não está rasamente afirmando uma realidade, ela está impondo um dever de concretizar esta realidade, o princípio da igualdade subentende que as desigualdades existem e, portanto, é necessário erradicá-las.

Num país onde perdurou séculos a escravidão como o Brasil, não se pode fantasiar que a igualdade racial existe, seja nas condições econômicas, sociais, jurídicas e em especial (pois é o tema do caso) educacionais. A igualdade formal existe, isto é, há uma princípio constitucional que expressa sua existência no “mundo das ideias”, mas este mesmo princípio comanda a sua existência no mundo real, a materialização dessa igualdade pode ser realizada de diversos meios, sendo um dos mais eficazes as ações afirmativas, como é o caso do implemento das cotas raciais.

Ao julgar (por unanimidade) improcedente a ADPF, consagrando então a constitucionalidade das cotas raciais, o Supremo Tribunal atua como um “magistrado do sujeito”, como pontuado por Garapon, isto é, atua como o defensor de minorias que quase nunca tem seus anseios acolhidos pela maioria legislativa. O reconhecimento da ferramenta das cotas como meio de transformar o “dever-ser” em “ser”, pode ser visto também sobre o conceito da “historicização da norma” de Bourdieu, ao transpor o direito promulgado em 1988 para a realidade e necessidade social demandada no século XXI, o STF permite que o direito evolua em conjunto com a sociedade.

Ademais, as referidas demandas sociais, que como analisa Michael Mccan, são o motor social que impulsiona esta expansão do direito, no caso concreto da ADPF foi mister a atuação de diversos coletivos sociais, grupos de direitos humanos e organizações interessadas como amicus curiae, isto é, “amigos da corte”, instituto através do qual a sociedade civil expõe seus pensamentos ao Supremo Tribunal Federal, transpondo no institucional o espírito social. Por fim, ao desconsiderar o pedido do DEM, o Supremo afirma um compromisso em desmantelar o que Sara Araújo conceitua como a “razão metonímica” de certas elites brasileiras, ao criar um modelo onde a raça é critério para ação positiva, afirmativa, quando se trata os desiguais desigualmente para então lhes conferir a igualdade material, a instituição brasileira rompe com o pensamento colonial, e abre o caminho para um futuro que pertence à sociedade brasileira, não à pensamentos e conjecturas setentrionais, coloniais e ultrapassadas.

 

Daniel G. G. Damian

Turma XXXIX - Matutino

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