domingo, 20 de novembro de 2022

ADPF 186: Caminhos para Reparação e Promoção da Pluralidade nas Universidades Brasileiras

     A Arguição de Descumprimento do Preceito Fundamental (ADPF) 186 fora ajuizada pelo Partido Democratas (DEM) e colocava como improcedente e inconstitucional a existência de cotas étnico-raciais, precisamente expressas pela a Ata da Reunião Extraordinária do Conselho Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), realizada em 06 de junho de 2003; a Resolução 38 do CEPE, de 18 de junho de 2003; o Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial, no que concerne a seus objetivos, ações para alcançá-los, definição do acesso à universidade, permanência na universidade e caminhos para a implementação do plano; e itens do Edital 2, referente ao segundo vestibular de 2009, de 20 de abril de 2009, do Centro de Seleção e Promoção de Eventos (CESPE) da Universidade de Brasília (UnB), sendo esta uma instituição vanguardista no país ao promover este sistema de inclusão. Nesse sentido, o parecer do Supremo Tribunal Federal foi de considerar como improcedente esta ADPF, de modo a afirmar as cotas étnico-raciais como constitucionais representando um passo importante para a promoção de garantias de direitos a grupos historicamente excluídos. Dessa maneira, faz-se imperiosa a discussão acerca da importância do sistema de integração por meio das cotas étnico-raciais nas universidades brasileiras, de modo a discorrer sobre os seguinte tópicos: acerca de sua pertinência, sobre a ação do tribunal, os efeitos desta ação, e a propiciação da ecologia dos saberes.

    Em primeiro plano, é preciso ressaltar que as cotas representam um avanço na promoção e asseguração de direitos materiais, de modo a ser, desta forma, de extrema relevância e pertinência ao país. Nesse sentido, do panorama histórico, entende-se que a população preta sempre sofrera com estigmas e preconceitos baseados em raízes do passado escravocrata do país que, dado uma Lei Aurea tardia e sem provisão de integração - demonstrando uma postura negligente quanto a estes grupos – propiciou a manutenção de um quadro de exclusão. Além disso, observa-se que o mito da democracia racial, colocado pela obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire, muito cultuado e ainda presente no imaginário de alguns brasileiros, demostra nada mais do que um véu sobre o racismo presente nas relações sociais do país. Tal tópico é discutido no voto do Min. Luiz Fux, o qual ressalta que Não se trata, como afirmou o partido requerente da ADPF, de uma “infeliz correlação entre a cor do indivíduo, pobreza e a qualidade do estudo”, fazendo crer que tudo não passaria de obra inescapável do destino, uma triste coincidência. As estatísticas de hoje são produto de ações pretéritas. Revelam com objetividade as cicatrizes profundas deixadas pela opressão racial de anos de escravidão negra no Brasil. Nesse período da história nacional, a cor da pele dizia,sem qualquer pudor, o lugar do indivíduo na sociedade  Dessa maneira, entende-se que, compreendidos em um panorama histórico de exclusão, que se reflete na entrada nas universidades, é de extrema importância a integração através das cotas, uma vez que tal ação está compreendida no “Espaço dos Possíveis” de Pierre Bourdieu – referente as possibilidades de efetivação e compatibilização da norma com sua realidade -, referidos tanto por lutas sociais quanto positivos em, por exemplo, na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968, segundo o qual ações afirmativas são “(...) medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais ”,  ela se faz permanente já que viabiliza a promoção da igualdade material dos Direitos pleiteados decorrendo de uma historicização desta demanda por este grupo. Acerca deste cenário, a jurista Daniela Ikawa expõe que: “O princípio formal de igualdade, aplicado com exclusividade, acarreta injustiças (...) ao desconsiderar diferenças em identidade. (...) Apenas o princípio da igualdade material, prescrito como critério distributivo, percebe tanto aquela igualdade inicial, quanto essa diferença em identidade e contexto. Para respeitar a igualdade inicial em dignidade e a diferença, não basta, portanto, um princípio de igualdade formal. (...) As políticas universalistas materiais e as políticas afirmativas têm (...) o mesmo fundamento: o princípio constitucional da igualdade material.” Nesse sentido, verifica-se que devem existir mecanismos que promoção a igualdade material, de modo a superar seu caráter meramente formal que não disponibiliza os mecanismos práticos de efetivação dos direitos, reforça, tal visão, Boa Ventura de Souza Santos em “Há necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Logo, verifica-se que as questões históricas ligadas a exclusão e preconceitos para com esses grupos demandam de ações que promovam a igualdade material, estando essas contempladas pelo Espaço dos Possíveis, pertinentes ao caráter de historicização da norma, e refletem um sistema racionalizado que garante direitos na área educacional.

Em segundo plano, são necessárias reflexões acerca da ação do Supremo Tribunal Federal no caso proposto. Nesse panorama, compreende-se o julgamento da ADPF como mecanismo previsto no próprio corpo Constitucional, de modo a servir como ferramenta para que o judiciário, mediante provocação – neste caso, proposta pelo Partido Democratas – verse soluções que determinem a constitucionalidade, ou a ausência dela na ação em questão. Desta forma, tal processo é natural da Constituição e demostra um aprofundamento da democracia, uma vez que traz à tona questões recorrentes, muitas vezes a grupos historicamente excluídos, os quais as demandas, muitas vezes são negligenciadas no campo legislativo, que se mostra omisso na promoção de produções que deem voz a essas problemáticas que, no caso, estavam expressas constitucionalmente através dos conceitos de “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do ensino público. Nesse sentido, tal panorama é reforçado pelo pensador Garapon, que expões a necessidade da ação dos tribunais como atores que promovam a magistratura dos sujeitos que por via da autodeterminação não possuem expressão suficiente para mudança de ainda arcaicos e rígidos manutentores do poder político no país. Assim, observa-se que o Julgamento pelo Supremo Tribunal Federal oferece uma promoção de garantias de direitos educacionais ao versar como constitucional o sistema de ingresso universitário via cotas.

Ainda, é necessário discorrer acerca da mobilização do direito no caso e sobre as consequentes mudanças decorrentes da decisão. Nesse sentido, a decisão, primeiramente, de promoção das cotas viera da Universidade de Brasília, uma vez lhe conferida autonomia de dispor de certas questões referentes a sua gestão - art. 207 (CF, 1988) garante às universidades, entre outras prerrogativas funcionais, a autonomia didático-científica e administrativa, fazendo-as repousar, ainda, sobre o tripé ensino, pesquisa e extensão.-, em contraposto, o partido Democratas surge como uma disposição contrária a essa prática, julgando-a inconstitucional. Nesse sentido, o STF, entende que a medida é constitucional e, dessa forma, propicia a expansão da promoção desta forma de ingresso em outras universidades do país. Dessa maneira, McCann expressa a mobilização do Direito como as ações de indivíduos e grupos de determinada luta social que conseguem por meio dessa devida expressão no campo do Direito, assegurando ou pleiteando sua materialidade, tal panorama promove, na visão do autor, um sentido de maior visibilidade que influência as ações futuras com relação ao tema discutido. Esse panorama é elucidado também, pelos pensadores Frankfurtianos: “as minorias étnicas e culturais se defendem da opressão, marginalização e desprezo, lutando, assim, pelo reconhecimento de identidades coletivas, seja no contexto de uma cultura majoritária, seja em meio à comunidade dos povos. São movimentos de emancipação cujos objetivos políticos coletivos se definem culturalmente, em primeira linha, ainda que as dependências políticas e desigualdades sociais e econômicas também estejam sempre em jogo.” Por fim, os efeitos das mobilizações travadas possibilitam a expansão da promoção e garantia de direitos.

Dessa forma, cabe discussão da questão do pensamento abissal e a propiciação do ecologia dos saberes aplicados a ADPF 186. Nessa continuidade, o pensamento abissal é categorizado, de acordo com Sara Araújo, como a “inexistência” de pensamentos e produções que aconteçam “do lado de lá” das premissas “modernas” de conhecimento abarcadas por ideais eurocêntricos, de modo a construir uma divisão - o pensamento moderno impõe e estabelece os limites de uma linha abissal que divide o mundo entre o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. Dessa maneira, a ecologia dos saberes constituiria um panorama de quebra com essa visão monopolizada do Direito, promovendo a agregação, a integralização de diversas lutas jurídicas, -  tal como a promoção da inserção do sistema de cotas como meio reparador e de promoção do acesso as universidades, tal ação promove, consoante a Oscar Vieira, o benefício do “bem público da educação” pelos menos favorecidos descritos no circulo histórico de exclusão; assegura a construção de um ambiente que favoreça a dignidade humana e uma sociedade mais justa, além de produzir conhecimentos que tragam o ponto de vista desses grupos, enriquecendo o fazer cientifico. Dessarte, compreende-se a importância da construção de uma ecologia dos saberes no campo jurídico e educacional como forma de ceifar o pensamento abissal alicerçado por ideais limitantes e de base preconceituosa.

Depreende-se, portanto, que a decisão do Supremo Tribunal Federal pela Constitucionalidade das cotas raciais nas universidades brasileiras fora de extrema pertinência para garantia de direitos básicos a educação . Para tal análise foram abarcados, principalmente, ideias dos pensadores Bourdieu, Garapon, MaCann, e Sara Araujo, que forneceram base aos tópicos aqui discutidos. Destarte, compreende-se a importância da decisão como um passo importante no caminho para a reparação e promoção da pluralidade dos espaços universitários do país

 Larissa Vitória Moreira, Segundo Semestre de Direito - UNESP Noturno

 

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