quinta-feira, 10 de novembro de 2022

ADO nº 26: uma análise embasada na perspectiva de mobilização do Direito em prol da expansão da magistratura do sujeito e do equilíbrio constitucional

 

É intrigante conceber as maneiras pelas quais as partes de certo todo podem, mesmo estando isoladas uma das outras, atuar em benefício próprio e, consequentemente, promover melhorias para todo o conjunto. Tal cenário pode ser exemplificado pela realidade presenciada por diversos grupos sociais, como a comunidade LGBTQIA+, os quais resistem diariamente em prol de que o seu direito de existência seja resguardado em meio ao coletivo da Sociedade – manipulado pelas elites culturais e econômicas para as quais a diversidade simboliza um óbice à padronização social tão necessária ao capitalismo, bem como à manutenção dos questionáveis “bons costumes”. Mesmo diante de repressões constantes realizadas pelo próprio contexto em que está inserida, a referida comunidade pleiteia garantias que, em última análise, são indispensáveis para todo o corpo social, bem como para a reafirmação dos princípios previstos constitucionalmente. Um aspecto que ilustra este fato é a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão de número 26, do Distrito Federal, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2019, que é responsável por ter criminalizado a homotransfobia. Isso posto, torna-se necessário evidenciar os meios através dos quais tal decisão foi e ainda é capaz de expandir o âmbito da magistratura do sujeito, bem como da materialidade da democracia em nosso país, por meio do fenômeno de historicização da norma.

A priori, o fundamento que impulsionou a ADO nº 26 foi, em essência, o conflito expresso entre o direito de existência digna dos membros da comunidade LGBTQIA+ e a ilusória liberdade de intolerância expressa pelas margens concebidas a partir da manipulação dos dogmas tradicionais da religião, de tal modo que o regime democrático foi utilizado como a justificativa de ambas as partes. Isto é, houve um embate entre distintos espaços dos possíveis (o religioso e o social), os quais buscaram no espaço judicial – a última instância de garantia do regime democrático – um meio de reafirmação da sua defesa, ou da conversão desta em uma verdade oponível a todos. Diante do exposto, inevitavelmente, foi considerado durante os embates a perspectiva de omissão legislativa em termos de inexistência de um regulador normativo que tenha como principal objeto a garantia da inocorrência do ódio homotransfóbico ou da sua perpetuação mascarada por desculpas mal disfarçadas de liberdade religiosa ou de expressão do pensamento. 

O principal ponto delicado expresso pela legislação, em sentido geral, consiste no fato de que que ela é regulada por princípios que aspiram a ser universais e neutros, como meio de expandir a sua aplicabilidade para todos os âmbitos sociais possíveis. Desse viés emerge um cenário no qual a norma escrita é distinta da sua correspondente norma aplicada na realidade, engendrando, no que diz respeito aos efeitos que produz, uma dicotomia bastante preocupante: igualdade formal e igualdade material. A fragmentação exposta é um risco para o próprio Direito, posto que o insere em um estado de contradição interna, posto que, bem como nos assegura a Física, forças opostas se anulam. A coexistência das duas formas de igualdade atua de modo a fazer com que os agentes sociais e mobilizadores do direito sejam igualmente divididos, como ocorreu no contexto impulsionador da ADO em análise. A pretensa igualdade que é tida como universal e utilizada como um dos argumentos dos defensores da liberdade religiosa consiste precisamente na expressão formal desse princípio, não tendo, portanto, aportes factuais. Em contrapartida, a igualdade material pleiteada pelos favoráveis à criminalização da homotransfobia consiste em um meio de historicizar a própria igualdade, ou seja, representa um caminho para adaptá-la a demandas que não foram previstas durante o seu contexto de criação. A ocorrência e prevalência da materialidade é capaz de engendrar uma maior aplicabilidade do princípio da igualdade, tão pregada pelo seu par formal. Ademais, o pleito em análise consiste, também, em uma forma de racionalização do Direito, tornando-o mais pertinente em termos de adequação com as demandas basilares da sociedade, posto que as converte em aspectos dotados de caráter jurídico e capazes de alterarem os rumos do ordenamento, direcionando-o ao horizonte da dignidade.

Ademais, retomando o aspecto da omissão legislativa, um fator profundamente determinante, necessário é fazer menção ao fato de que ela é responsável por originar margens para medidas, inclusive, antidemocráticas -  bem como a noção ilusória de que os preceitos religiosos fundamentam e legitimam (mediata ou imediatamente) o ódio aos membros da comunidade LGBTQIA+. Perante tal perigo social motivado pela expressiva lacuna normativa, foi destinado ao Judiciário (expresso pelo STF) a incumbência de garantir a manutenção dos direitos mais fundamentais daqueles indivíduos que, por força das circunstância, estavam expostos ao repúdio e à violência. Assim, foi reiterada a magistratura do sujeito, fato este que alude ao fato de que houve a proteção dos vulneráveis a partir da intervenção por parte do Direito, mais especificamente do Supremo, não configurando, no entanto, uma expressão do ativismo judicial. Perante a inexistência de leis próprias para o caso e almejando o cumprimento da sua competência constitucional de garantidor dos direitos fundamentais, o Judiciário atuou, não de modo antecipado, posto que a demanda social existia e já era notória, mas, sim, dentro dos limites do adequado e do esperado. Não se pode presumir a conjuntura de que os órgãos judiciais não devem agir nos casos de eminente violação de direitos, sob o subterfúgio de não haver normas específicas acerca dos casos. Pessoas em estado de violência e, na mais grave das hipóteses, risco de morte não podem aguardar pelo processo legislativo ordinário de criação de leis que as contemplem mais diretamente, com a esperança de que os dispositivos normativos gerais já existentes sejam capazes de cessar, por ora, todo o estado indigno no qual estão inseridas. As demandas já verificadas na realidade devem ser sanadas e, nos casos em que couber a sua intervenção, o Judiciário deve agir, sob pena de contrariar a sua própria competência atribuída constitucionalmente. O pleito poderia ter sido realizado tanto pela via judicial quando pela via legislativa, porém, há de ser considerada a urgência do caso, a qual não admite a demora e a incerteza expressa pela segunda alternativa. Além disso, a partir da ação judicial, espera-se que o Poder Legislativo incorpore as experiências presenciadas pelo seu par e que, a partir disso, crie normas que sejam capazes de impedir o retorno de tais ocorrências e garantir a existência digna na qual seja extinto o ódio homotransfóbico. Portanto, a ação do Judiciário não anula uma eventual ação do Legislativo; elas devem ser complementares, ainda que, excepcionalmente, a primeira tenha de estimular a segunda e não o contrário. Consequentemente, são preservados: o equilíbrio entre os poderes, a autonomia entre os seus membros e a continuidade e maior efetividade democrática.

Ademais, o quadro em análise expressa um meio dos variados meios de expressão da mobilização do Direito, enquanto modo de dispô-lo adequadamente em prol de que sejam atendidos certos clamores em específico. No caso da ADO nº 26, é clamada a igualdade material e, para tanto, foram pleiteados retificadores pertencentes ao nível estratégico e ao constitutivo e, por fim, tais alterações foram concedidas. No que tange ao primeiro nível, a criminalização da homofobia é capaz de dar início a satisfação das demandas da comunidade LGBTQIA+ e, portanto, estimular lutas futuras por propósitos idênticos ou similares, seja pela própria comunidade, ou por outro grupo social. Já no nível constitutivo, a alteração estrutural realizada por tal decisão foi capaz de remodelar a cultura normativa e social vigente, de modo a fazer com que o ordenamento passasse a não mais admitir formas veladas de legitimação do ódio homotransfóbico, ainda que elas surjam disfarçadas de liberdade religiosa. A partir da expansão do âmbito constitutivo é condicionada a ampliação do espaço jurídico dos possíveis, tornando-o mais contingente em termos de consonância com as novas demandas que foram incorporadas por meio e em prol da historicização da isonomia. Cabe fazer menção ao fato de que este último nível envolve alterações lentas e, portanto, modifica o comportamento dos indivíduos de forma gradual; portando, incumbe ao nível estratégico sustentar pleitos posteriores acerca do mesmo aspecto (a criminalização da homotransfobia) a fim de que as alterações no nível constitutivo possam ser preservadas e estimuladas.

À luz do exposto, torna-se imprescindível a decisão do Supremo, posto que, ao contemplar o pleito social da comunidade LGBTQIA+ por meio da expansão do sentido de racismo social para os casos de homofobia, transfobia e formas correlatas de agressão, ajudou a concretizar o fato de que a orientação sexual não deve ser uma razão de segregação social dos indivíduos, nem mesmo da sua repressão ou disposição violenta. A magistratura do sujeito viabilizada pela historicização da norma, bem como supracitado, neste caso, foram capazes de viabilizar modificações no nível constitutivo do ordenamento jurídico, bem como da própria sociedade brasileira, introduzindo o fato de que reguladores sociais como a religião não deixam margens para que os seus defensores os utilizem como meio de legitimação e de imposição do próprio ódio e intolerância aos demais membros do corpo social. 

Mário Augusto Monteiro Filho - primeiro ano (tuma noturna).

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