terça-feira, 8 de novembro de 2022

A equiparação da transfobia e homofobia ao crime de racismo à luz da sociologia do direito

Uma questão que assume grande relevo no debate a respeito da atuação do Judiciário no Brasil de hoje é a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, ajuizado pelo PPS (Partido Popular Socialista) no final de 2013. Ela alegava omissão por parte do Poder Legislativo com relação à criminalização da homofobia e da transfobia, isto é, da discriminação em função de orientação sexual e de identidade de gênero, respectivamente.

            Como se observou em outras oportunidades, quando questões de natureza semelhante foram levadas à apreciação do Supremo Tribunal Federal, um argumento utilizado amiúde por aqueles que se opõem à atuação da Corte é o de usurpação de competências por parte desta. Essa alegação já foi extensivamente analisada em ocasiões anteriores, quando expusemos as fragilidades de seu argumento. Na presente oportunidade, portanto, analisaremos de modo mais específico a seguinte questão: a decisão feita pelo STF com relação à ADO 26 configura um caso de historicização ou de criação da norma?

            Mas antes, é necessária uma breve análise da configuração do espaço dos possíveis, como coloca Pierre Bourdieu, nesse debate. O sociólogo francês entendeu e afirmou com muita clareza em sua obra que o condições históricas específicas dão origem a lutas no campo de poder, e estas definem e redefinem, a todo momento, o espaço dos possíveis. Em suas próprias palavras, “(...) obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas.” Observamos que no caso ora analisado, havia, por um lado, a possibilidade de uma grande vitória para a comunidade LGBTQIA+ por meio da tão protraída mas enfim concretizada, caso assim decidisse o tribunal, criminalização de atos discriminatórios com base em orientação sexual e identidade de gênero. Por outro, era possível que o Tribunal não entendesse que houve omissão por parte do Legislativo, e a situação permanecesse tal qual se encontrava então do ponto de vista da criminalização. Em verdade, uma análise mais honesta do espaço dos possíveis nos permite concluir que nesse cenário hipotético em que a decisão do STF fora outra, o espaço se retrairia, e a situação se tornaria ainda mais dificultosa para a comunidade LGBTQIA+. Sofrer essa derrota perante a Corte Suprema ocasionaria um desgaste significativo para a luta, o que teria o potencial de atravancar o seu progresso. Isso posto, fica ainda mais claro o porquê da decisão de fato tomada ser motivo para comemoração.

            Quando o Tribunal assemelhou, por analogia, a homofobia e a transfobia ao racismo para poder, assim, criminalizá-la, tivemos um exemplo claro de historicização da norma. O fato é que, quando de nossa última Assembleia Constituinte, a luta LGBTQIA+ não avançara o suficiente para que conseguíssemos uma vedação explícita à discriminação por orientação sexual ou por identidade de gênero na Constituição, de modo que o que se conseguiu no artigo que elenca os objetivos fundamentais da República (art. 3º) foi a seguinte redação: “ Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Com relação ao caput do art. 5º, em que novamente figura a preocupação em vedar a discriminação, vemos dispor o texto: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza(...)” Por óbvio, em um Estado onde são vedadas “quaisquer outras formas de discriminação”, e se todos são iguais frente à lei sem distinção de qualquer natureza, não há como não acolher os argumentos de equiparação, do ponto de vista penal, da homofobia e da transfobia ao racismo. Esse debate, no entanto, só teve condições de ser colocado em pauta depois de décadas de incansável luta da comunidade LGBTQIA+. Embora a equivalência sempre houvesse existido, o seu reconhecimento pela lei demorou para ser abrangido pelo espaço dos possíveis. O Tribunal optou, sabiamente, por adequar a norma às condições e lutas históricas em que ela se insere, ampliando direitos por meio dessa historicização da norma.

            O caso desta ADO foi um exemplo brilhante de mobilização do direito pela ação coletiva, o que somente reforça a natureza democrática, diferentemente do que querem alguns, da decisão. Como esclarece o sociólogo Michael McCann, “(...) mobilização do direito se refere às ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca de seus interesses e valores.” Está perfeitamente claro que foi exatamente esse o processo que se verificou no caso em discussão.

            Não há que se falar, portanto, em usurpação de competências, muito menos em paternalismo judicial: o STF somente agiu conforme foi chamado a agir. Ao fazer uma analogia que vise à garantia da dignidade da pessoa humana e da efetivação da igualdade material, princípios tão prezados pela nossa Constituição, o Tribunal demonstrou deferência e atenção à Lei Maior. Não se verificou um ativismo judicial, como muitos gostariam de qualificar a atuação, mas uma mera atuação judicial, inteiramente dentro dos moldes previstos pela Carta Magna. Novamente citamos McCann, pois suas colocações oferecem uma conclusão deveras eloquente a essa discussão: “(...) os tribunais são apenas um vínculo institucional de um ator nos complexos circuitos de disputas políticas.”

            Nessa mesma perspectiva, temos as ideias do jurista Antoine Garapon, exploradas mais a fundo em ocasião anterior, mas que novamente merecem menção. Ele lembra que a ascensão do Poder Judiciário, perceptível já no final do século XX, quando escreveu “O juiz e a democracia”, é apenas a consequência natural de um Estado que não responde de maneira suficiente às demandas da população. É em decorrência de uma necessidade popular que o juiz não é mais uma mera “boca da lei”. Sobre o direito, diz: “Ele converteu-se na nova linguagem com a qual se formulam as demandas políticas, que, desiludidas com um Estado inativo, se voltam maciçamente para a justiça.” Mais adiante, o jurista observa, de uma perspectiva histórica, aquilo que viemos alegando ao longo de toda esta análise: “A emancipação do juiz tem sua origem, antes de mais nada, no colapso da lei que garantiu, na visão clássica, a subordinação do juiz, e na nova possibilidade de julgar a lei oferecida pelos textos que contêm princípios superiores, como a Constituição ou os Tratados Internacionais.”

            Vale observar que, considerada a perspectiva da historicização da norma, o Tribunal pode, futuramente, aproveitar oportunidades semelhantes para, assim como fez na ADO 26, assegurar direitos a grupos marginalizados, mas tão marginalizados que até o presente não se interpôs nenhuma ação de inconstitucionalidade em seu favor que viesse a mudar o status quo.

Afinal, o Estado Democrático de Direito em que se constitui o Brasil valoriza, de modo fundamental, a igualdade entre os indivíduos, igualdade que, a fim de ser concretizada, requer, com frequência, medidas especiais de proteção a grupos em situação de marginalização – eis a essência da tão evocada igualdade material. Sendo a igualdade material um princípio valorizado pelo Estado Brasileiro, concluímos com as palavras de Antoine Garapon, mais importantes hoje do que jamais foram: “É preciso que o direito reencontre sua elegância. Ele só a reencontrará no momento em que passar a ser concebido não apenas como um conjunto de regras, mas também como um conjunto de princípios.”

                             Helena de Battisti Almeida

 

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