sábado, 19 de novembro de 2022

A desconstrução da linha abissal através da mobilização e magistratura do sujeito

   O colonialismo e o neocolonialismo(imperialismo) fomentaram em países  hodiernamente considerados subdesenvolvidos, uma linha abissal que transforma o modo como esse países e seus cidadãos são vistos e incluídos em relações internas e externas. Essa linha abissal, segundo Sara Araújo, propõe a divisão, utilizando critérios hegemônicos e eurocêntricos, entre aqueles que são considerados dignos, desenvolvidos, cultos, produtores de riqueza e ciência e aqueles que não são. Deste modo, todos que não se enquadram em um cânone hegemônico, são marginalizados e considerados invisíveis quanto as suas formas de saber, cultura e raça. Além disso, torna-se importante notar, partindo dos conceitos de Pierre Bourdieu, que essa hierarquização histórica proposta, tem como uma de suas principais bases, a utilização de um capital simbólico, dado que os processos colonizadores se engendraram em uma dominância cultural que reconhecia o conhecimento e a expertise(capital cultural) como fatores qualificadores e permissivos para exercer o poder e a violência. A força militar e econômica não foi e não é o único modo de contribuir com desigualdades e formação de seres invisíveis. Com isto, como é possível permitir a maior participação de atores excluídos e  suas respectivas culturas e formas de saber, no cenário nacional e internacional?

O direito, mesmo sendo criado com característica abstrata e de razão metonímica, que reflete o pensamento hegemônico,eurocêntrico, masculino, branco e heterossexual, pode incluir atores minoritários através de uma leitura crítica que considere a realidade fática material e a possibilidade de garantir direitos. Trata-se da incorporação da magistratura de sujeitos e mobilização do direito para enfrentar a marginalização.

Em primeiro plano, as democracias contemporâneas, segundo Antonie Garapon, amplificam a necessidade de atuação da justiça. Esta acaba tendo função de apaziguar o molestar do indivíduo sofredor moderno, incorporando o que é chamado de “magistratura do sujeito”, uma capacidade de amparar o sujeito em busca de prerrogativas e devolver a este toda a dignidade e capacidade democrática que lhe é aferida formalmente. Deste modo, nota-se que tal forma de ver o direito é plenamente capaz de  interpretar a Constituição e legislações ordinárias a partir do desenvolvimento da situação fática, levando o entendimento da necessidade de decisões que desconstruam o direito e a ciência hegemônica e busquem a efetividade de garantias normativas àqueles que desde a colonização estão marginalizados do corpo social, econômico e político. Além disso, também é necessário, segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso, uma dose de ousadia e de análise do sentido social e histórico na interpretação normativa, fazendo com que o juiz “empurre” a história quando ela emperra. Tal ousadia e fundamentos interpretativos são importantes para enfrentar relações de poder criadoras da linha abissal.

Em segundo plano, como dito já em texto anterior, a garantia de direitos, geralmente, não está restrita somente à ação do judiciário, dado que há uma participação dos mais diversos atores sociais. Tal participação é estuda por Michael McCann como uma mobilização do direito,  ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores. A mobilização aparece como mecanismo essencial para pressionar os poderes políticos quando estes, em especial, o judiciário, não ultrapassam as relações de poder. Ademais, parte de um movimento do povo para garantir prerrogativas para o povo, uma vez que é representado ,em sua maioria das vezes, por movimentos sociais engendrados de consciência de classe e senso histórico. Deste modo, consolidam-se como a primeira trincheira de mobilização para fomentar amparo jurídico e desconstruir a linha abissal. Nota-se a importância dessa mobilização em momentos de tentativa de retrocesso de direitos, como a ADPF 186 ,ajuizada pelo DEM, com o intuito de conseguir a inconstitucionalidade das cotas raciais. O partido referido, como claro representante de classes dominantes, tentou  impedir o cumprimento de uma dívida histórica que o Brasil tem com a população negra. O STF julgou totalmente improcedente a arguição, influenciados claramente por uma magistratura do sujeito e também por uma capacidade de mobilização. Por fim, a mobilização no direito internacional também é fundamental para alterar o panorama de países subdesenvolvidos e o imperialismo contemporâneo. Muitas vezes ONGs internacionais criam suas estratégias de ação por meio da junção de diferentes atores sociais no mundo todo, com mobilização tanto física quanto digital, visando o a implantação de acordos e tratados internacionais e a materialização destes.

Em síntese, conclui-se que o direitos crítico, baseado na capacidade de garantia de direitos por meio da magistratura do sujeito e mobilização, é mecanismo necessário para combater o direito abstrato-hegemônico e desconstruir a linha abissal. Trata-se de reconhecer as disparidades históricas advindas do processo de colonização e tentar por meio da atuação de magistrados e outros atores sociais ,conferir garantia de direitos e posterior efetividade.

João Felipe Schiabel Geraldini. Direito Noturno, 1ano.

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