segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O que é família? Reflexões sobre a ADI 4.227 e a união homoafetiva

           Em 2008, o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, apresentou ao STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, alegando a violação de direitos à igualdade e à dignidade humana por conta do não reconhecimento pacificado dos direitos à união homoafetiva no estado. Como pedido subsidiário, colocou-se que a ADPF tivesse seu conteúdo recebido de forma parcial, caso procedente, enquanto Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.227), pautando os dizeres do artigo 1.723 do Código Civil e o entendimento de que uma interpretação que não abarcasse a união homoafetiva enquanto entidade familiar seria contrária à própria Constituição.                                                 
       Sendo assim, com a ADI 4.227 proposta pela Procuradoria Geral da República, observou-se uma disputa teórica pelo poder de dizer o direito e a aplicação prática do chamado “espaço dos possíveis”, cunhado por Bordieu, principalmente quanto às demandas trazidas pelos amicus curiae. Observa-se esse fenômeno com a mobilização dos mesmos artigos, princípios e elementos do direito em conclusões distintas, indicando a interação dos diversos campos possíveis em tensionamento na constituição do campo jurídico. De forma prática, ao mesmo tempo que se notou a presença de diversas organizações estruturadas a partir da defesa dos direitos LGBTQI+ e da mobilização dos princípios constitucionais de igualdade e não discriminação, como o Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual, pautaram também o debate instituições de cunho religioso, como a Conferência dos Bispos no Brasil (CNBB), defendendo que “a pluralidade tem limites” ou que “afeto não pode ser parâmetro para constituição de união homoafetiva estável”.
      Apesar dos diferentes interesses em jogo nas falas dos amicus curiae, os votos do ministros foram unânimes: entendeu-se a união afetiva enquanto entidade familiar, com direitos e deveres em condição de igualdade aos de uma união entre homem e mulher. Essa decisão é decorrente de uma racionalização do direito, com a construção do voto dos ministros estruturadas em diferentes raciocínios de pretensa universalização: um primeiro entendimento é o delimitado pelo ministro relator Britto, que entende que a família é a base da sociedade e, como tal, dotada de singular proteção da Constituição, que buscaria preservar esse instituto independentemente de seu modo constitutivo- seja este informal ou oficializado, com integrantes héteros ou homossexuais. Sustentando sua afirmação, recorda que o instituto do casamento também está presente na Constituição, mas sem especificamente trazer os dizeres “homem” e “mulher”; assim, conclui que a especificação dos termos no caso da união civil seria uma forma de reforçar o papel de igualdade entre os gêneros nesse instituto, e não discriminar ou delimitar direitos, afirmando que “não se deve fazer uso da letra da Constituição da República para ‘matar o seu espírito’". Em uma perspectiva distinta, o ministro Lewandowski entendeu que a união homoafetiva não estaria abarcada pelos textos jurídicos, mas que pela realidade fática, constituiria uma nova categoria de união que, na “lacuna” legislativa, deveria ser interpretada por analogia a partir do direito à união entre homem e mulher. Outros votos com linhas diferentes, mas com resultados semelhantes surgiram, sempre recorrendo à defesa de direitos fundamentais enquanto base da argumentação.
      Esse julgado exemplifica a visão de Garapon acerca das sociedades democráticas modernas e a complexificação das relações e do próprio direito, já que, segundo o autor, um “ideal de mundo normativo, enquadrando e prevendo todas as situações sociais, é abandonado”, com a “lei geral incapaz de apreender a diversidade e valores”. Essa ideia se observa, nesse caso, principalmente a partir do entendimento de “família” pelo ordenamento brasileiro, completamente reestruturado e atualizado com as novas, diversas e complexas manifestações familiares. Com essas observações, conclui-se que somente com uma historicização e contextualização da norma é possível que o direito acompanhe as pulsantes mudanças sociais e continue vivo; razão que corrobora para o crescente protagonismo dos tribunais.
      Nesse mesmo raciocínio, Garapon entende que a complexificação das manifestações sociais e a própria estruturação  democrática contribuiriam para uma interiorização do direito, um “auto tutela” construída a partir de uma crescente “indiferença de todos quanto às escolhas de cada um”. O autor discorre sobre a existência de indivíduos que, no entanto, estariam em condições vulneráveis e não poderiam exercer com plenitude suas atividades e escolhas, sendo necessária uma instituição que garantisse seus direitos em caso de necessidade, em um fenômeno que chamou de “magistratura do sujeito”. Não consegui deixar de interpretar os dizeres literais de Garapon como uma visão paternalista, quando traz exemplos de indivíduos que supostamente teriam sua vontade “viciada” e não poderiam tomar ações por si próprios com prudência (já que em um contexto atual, o problema não seria uma pretensa falta de ponderação individual que fragilizaria esses indivíduos, mas uma vulnerabilidade de projeção social); contudo, acredito que é possível transpor mais adequadamente esse conceito para um entendimento do judiciário enquanto legitimador do direito em disputa pelas minorias, rebalanceando forças em uma magistratura que realmente zela PELO sujeito, pela dignidade humana e pelos direitos sociais, defendendo as minorias e consagrando, assim, a própria democracia. Nessa interpretação, a legitimação do direito não surge como papel exclusivo do judiciário, mas das próprias mobilizações; tutelam-se os direitos, não o sujeito.
      Por fim, é possível verificar na decisão do julgado a consolidação de um entendimento mais abrangente de família e das relações sociais e afetivas atuais. Dessa forma, apesar de não definitivo na previsão de direitos e possíveis modificações sociais, a ADI traz um importante panorama para o futuro de abrangência na interpretação das múltiplas formas de se constituir núcleos familiares, com a frase do próprio ministro relator que encontra na “família um fato espiritual e cultural”. Dessa maneira, consolida-se a segurança jurídica às relações homoafetivas, em uma vivência mais plural e democrática, assim como previsto pela Constituição. 
      Isabella Neves- 1º ano direito matutino

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