quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A ADI 4277 e sua importância para o avanço democrático brasileiro

        O julgamento da ADI 4277 trouxe uma grande ruptura com os padrões que se perpetuam nas decisões judiciais. Nele, o Supremo Tribunal Federal (STF) proclamou que a união homoafetiva é considerada como entidade familiar e que, por isso, deve usufruir dos mesmos direitos e deveres que a união estável entre homens e mulheres que seguem o modelo da heteronormatividade. A partir da intervenção de uma série de amicus curiae, como o do Instituto Brasileiro de Direito de Família, foi utilizado, para conclusão da análise, o art. 1.723 do Código Civil brasileiro em conjunto com sua interpretação a partir da Constituição.

            Através de uma visão jurisprudencial, por meio de argumentos metajurídicos, o ministro relator, Carlos Ayres Britto, fez uma digressão juridicamente precisa pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da não-discriminação, da igualdade e da liberdade no que toca à sexualidade, que revelaram sua discordância em relação a ocasiões que negam direitos válidos a indivíduos por estes não se encaixarem totalmente em situações já jurídica e expressamente tuteladas. Outros ministros, como Luiz Fux e Carmem Lúcia também seguiram o posicionamento do relator e, por estudo do artigo 226 da Constituição Federal, apontaram que a família não é um fato necessariamente biológico e, desse modo, pela própria base constitucional não ter diferenciado famílias fáticas das formalmente constituídas, não haveria distinção entre famílias hetero e homossexuais. Logo, como supracitado, a união homoafetiva deve ser configurada como entidade familiar.

            Racionalizando o Direito, conceitos de Pierre Boerdieu podem ser aplicados no julgamento em questão. Nesse contexto de reivindicações sociais igualitárias, é possível verificar um conflito no espaço dos possíveis garantido pela própria Constituição, o que coloca em protagonismo o poder simbólico. Tal poderio explicita o entrave entre diferentes classes ideológicas para obterem autoridade e, consequentemente, atingirem mais facilmente seus interesses, sendo que os casais homoafetivos sofrem constantemente por não conseguirem atingir o domínio desse poder e, assim, suas pautas vão ficando para depois. Nesse sentido, também entra a importância da historicização da norma, ou seja, não é viável que as normas atuais continuem seguindo visões preconceituosas e conservadoras dos séculos passados, o que faz com que se torne realmente imprescindível que a ADI 4277 fosse julgada procedente pela maioria, assegurando o livre exercício de toda e qualquer forma de amor para seres humanos iguais, em pleno século XXI.

            Por outro lado, a questão trouxe levantamentos entre os constitucionalistas no sentido de que o STF estaria afrontando a separação de poderes e utilizando o poder legislativo de maneira desenfreada, opinião que foi rebatida pelos ministros em alguns de seus votos, uma vez que o grupo social de minorias estava somente buscando a efetivação de alguns de seus direitos. A judicialização, que, para Garapon, é um fenômeno político-social, chega, em alguns momentos, a ser cunhada de ativismo judicial, termo que está associado a uma participação mais ampla e efetiva do Judiciário na execução de valores constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros poderes.

Tal atividade divide opiniões, enquanto Barroso diz que o Judiciário vem intervindo, porque é o que lhe cabe fazer no papel de defensor do povo, já que o Legislativo se exime dos projetos de lei que vão de encontro com a homoafetividade desde meados da década de 90, e Garapon fala que o maior controle do juiz é consequência direta do que abrimos mão em prol da liberdade, Maus já acredita que “quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática”. No entendimento dos diversos ministros, o ativismo foi a última situação encontrada para o caso, pois os direitos fundamentais de cidadãos brasileiros estavam sendo desrespeitados e sonegados há muito tempo e eles mereciam um maior reconhecimento.

Dessa forma, a magistratura do sujeito, isto é, buscar a efetivação de direitos através do poder judiciário, torna-se uma tarefa política primordial para a realização de metas, já que, se pela via jurídica já é complicado atingir esses objetivos, por outros meios seria ainda mais complexo. Nessa perspectiva, não há uma antecipação de direitos, há um aprofundamento da democracia na medida que normas que já deveriam abranger os casais homossexuais só foram devidamente tuteladas dessa forma, o que já teria de ter sido feito há muito tempo.

            Com base no analisado, a decisão da ADI 4277 foi mais do que importante para o avanço democrático no Brasil. Os efeitos desse julgamento transcenderam a união homoafetiva e diversos institutos foram abertos, como a conversão da união estável em casamento ou até o casamento direto por assim dizer. Logo, o julgado trouxe evoluções essenciais para essa comunidade que sofre, tanto com o preconceito comumente, quanto com os impedimentos para se chegar à concretude de direitos já garantidos para os heteronormativos, por mais que não haja palpável diferença entre estes.


Núbia Quaiato Bezerra, Direito noturno


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