segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A ADI 4277 e o preconceito mascarado sob o argumento de inconstitucionalidade


No final de outubro de 2011, em uma decisão histórica e extremamente necessária, o STF reconheceu a união homoafetiva e seus respectivos direitos, a partir da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Fato esse que não corresponde a um “favor” pois, além de que só foi possível graças a décadas de lutas da comunidade LGBTQIA+ e dos movimentos sociais, o não reconhecimento da união homoafetiva fere os Direitos Humanos, o artigo 5º da Constituição e o Direito a Dignidade.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

          Entretanto, o que pareceu ser o fim e a vitória de uma grande batalha, só foi na verdade, o começo dela, uma vez que grande parte da população afirma que tal decisão do STF foi inconstitucional e que não cabe ao Judiciário cuja função, para eles, é ou deveria ser, apenas julgar casos. Ademais, os argumentos racionais se baseiam em Ativismo judicial, inconstitucionalidade, ameaça à democracia e que isso seria de responsabilidade, única e exclusiva do Judiciário. Entretanto, faz- se necessário o questionamento: Será que todos esses argumentos não acabam sendo máscaras para preconceitos enraizados na maior parte das vezes? Quando na realidade, alegar inconstitucionalidade é apenas uma das brechas que conservadores e/ou religiosos que acreditam na definição de família como homem e mulher e que suas crenças religiosas deveriam ser aplicadas a todos, mesmo em um Estado Laico, e mesmo que isso signifique restringir direitos de uma parcela da população.

          Em primeiro lugar, não há como negar que o reconhecimento da união homoafetiva estava sim dentro do espaço dos possíveis de Bourdieu mesmo com os conflitos, uma vez que tal direito já possuía respaldo da Constituição e foi fruto da mobilização e luta da sociedade. Em segundo lugar, dentro da perspectiva de Bourdieu também houve a chamada “historicização da norma”, o que significa uma interpretação do ordenamento jurídicos em conformidade com o contexto social, de forma que haja novas possibilidades de interpretação, e foi isso que fez com que o o art. 266 da Constituição Federal  §3, que afirma que a união estável seria “entre o homem e a mulher”, deixasse de ser um argumento possível para o não reconhecimento dos direitos LGBTQIA+. Por fim é necessária a reflexão, o Direito é feito para a sociedade, a qual não é estática, logo novas demandas surgem constantemente, se não houvesse mudanças e novas interpretações, basta uma rasa olhada para o passado histórico do Brasil, para perceber que uma serie de atrocidades estariam acontecendo até hoje e com o apoio da lei.

          Portanto, mesmo com os conflitos descritos acima dentro do chamado “Espaço dos possíveis”, a negação do Direito pelo STF estaria sendo caracterizado, segundo Bourdieu, como instrumentalismo e formalismo. Sendo estes, respectivamente, o direito a favor das classes dominantes e o entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais. Classe dominante essa caracterizada majoritariamente por homens brancos, heteros, conservadores e que se dizem cristãos, quando o que mais fazem é destilar ódio e mascarar seu preconceito com argumentos que tentam manter uma visão ultrapassada e preconceituosa de família.

          Em relação a chave e um dos argumentos principais contrário a ADI, que diz respeito ao ativismo judicial, em tom pejorativo, um primeiro ponto a ser comentado é o entendimento de que se fez indispensável a intervenção do STF, primeiramente, porque enfrentamos a um longo  período de tempo no Brasil, uma grande crise de representatividade no legislativo, o qual mesmo com a pressão social e com Direitos sendo ignorados e excluídos se fez omisso, necessitando, assim, da intervenção do Supremo Tribunal Federal, cuja função vai além de julgar casos, sendo também responsável por garantir que a Constituição e os Direitos de todos sejam respeitados. Dessa forma, nesse caso percebe-se a “magistratura do sujeito” de Garapon, que consiste no ato de um indivíduo que ao não possuir amparo e ter seus direitos violados recorre para o Judiciário.

          Em penúltimo lugar, não houve usurpação do poder do legislativo pelo judiciário e nem uma eminente ameaça ou desrespeito aos 3 poderes, tendo em vista que o artigo 102 da Constituição garante o controle de constitucionalidade pelo STF, uma vez que ele possui a função de “guardião da constituição”

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)

          Em último lugar, não se pode afirmar que a ADI 4277 é uma ameaça à democracia, tendo em vista que o resultado favorável só foi possível graças a própria democracia, estava respaldado na Constituição e ampliou e garantiu os Direitos de uma minoria que até hoje no Brasil segue em luta, resistindo e sendo alvo de uma série de preconceitos, que seguem sendo mascarados por fundamentos religioso, "morais”, conservadores e até mesmo fundados em premissas errôneas a respeito do Direito e do STF. Por fim, Barroso afirma que “Ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos representantes do povo”, dessa maneira não há como afirmar que houve ameaça à democracia e sim a concretização e ampliação dela.


"Quando eu estava no exército, eles me deram uma medalha por matar dois homens e uma dispensa por amar um "

Anny Barbosa, 1º ano de Direito Noturno.

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