segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Quando se inicia a vida? - Uma análise da ADPF 54 à luz de Bourdieu.

     Primordialmente, peço licença ao meu leitor para tornar essa dissertação um pouco mais pessoal. Dessa forma, inicio meu texto realizando uma indagação um tanto quanto polêmica, a qual abre brechas para uma série de respostas: Quando se inicia a vida? 

     As prováveis centenas de diferentes respostas, segundo Bourdieu são reflexos do habitus de cada um, ou seja, todos possuímos uma matriz cultural que nos influencia fortemente a tomar determinas escolhas ou posicionamentos, matriz essa que está relacionada com a condição de classe e com os diversos campos que os indivíduos pertencem e conhecem ao decorrer do tempo. A questão se faz ainda mais complexa quando não há um posicionamento científico unânime e concreto, desse modo, os posicionamentos se tornam cada vez mais embasados no senso comum e em preceitos morais e religiosos. 

    Caro leitor, sem dúvida nenhuma não serei eu que darei a resposta para uma pergunta tão complexa, entretanto, apesar de não conseguir definir precisamente em que momento se inicia a vida, carrego comigo uma certeza indubitável- a mulher que é obrigada a manter a gestação de um feto que não possuí possibilidade de vida acaba morrendo. Não afirmo isso por conta dos riscos físicos dessa gestação os quais são evidenciados e comprovados pela ciência, digo também no aspecto mental, toda mulher que passa por uma situação como essa forçadamente, acaba por morrer um pouco por dentro e por “matar” aos poucos sua saúde mental. Ser mulher é morrer um pouquinho diariamente, seja por grupos dominantes decidindo sobre nosso próprio corpo, pelo assédio, pela discriminação ou pelas séries de injustiças enfrentadas. 

    Nesse viés, o STF em 2012 acabou por julgar a ADPF 54, a qual buscava descriminalizar e trazer o direito da mulher de interromper a gravidez de fetos anencefálicos. A decisão não foi unanime, mas possuiu a maioria favorável sob o argumento de que seria uma medida necessária para proteger a genitora dos riscos da gravidez, sejam eles físicos ou psicológicos, além de que se faz necessário proteger o direito da mulher a dignidade humana em detrimento do “direito a vida” do feto, uma vez que, de acordo com o Ministro Luiz Barroso, não há um consenso na jurisprudência a respeito de quando se inicia a vida, porém, há um marco do que é considerado morte e um feto nessas condições não possuí nenhuma chance de vida, sobrevivendo por no máximo minutos após a gestação, dessa forma, a interrupção da gravidez não pode ser considerada como aborto. Por fim o ministro Luiz Fux(2012) ainda complementa: 

"Um bebê anencéfalo é geralmente cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor. Apesar de que alguns indivíduos com anencefalia possam viver por minutos, a falta de um cérebro descarta completamente qualquer possibilidade de haver consciência. [...] Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal equivale à tortura”. 

    Entretanto, conforme citado acima a decisão não foi baseada em opiniões somente favoráveis e dividiu opiniões na época assim como continua dividindo na atualidade. A razão da demora para que um direito básico fosse concedido e para que mesmo assim fosse visto como subversivo, imoral e cruel para muitos, decorre do fato de que na maior parte das vezes o campo social é carregado pelo conservadorismo, pela religiosidade e por preceitos machistas que acabam por invadir e influenciar o campo jurídico, o qual não é um mecanismo isolado e que depende apenas das normas. Bourdieu ainda vai além na sua análise e cita o Espaço social para exemplificar tal situação, segundo ele há uma série de campos, o jurídico, social, científico, artístico e político, os quais se influenciam na maior parte das vezes e possuem entes ou instituições que dominam e que possuem o poder simbólico constituindo uma relação antagônica de dominador sob dominado. Nesse julgado, o dominado, através das lutas sociais (e não pela bondade e compaixão do dominador) conseguiu se sobrepor, fazendo com que o espaço dos possíveis fosse ampliado, garantido mais direitos para uma demanda necessária e urgente. 

    Por fim, Bourdieu afirma com convicção que o Direito deve evitar o instrumentalismo, de forma que ele represente as questões sociais de todas as classes e não apenas daqueles que detém o poder simbólico e, felizmente, a decisão do STF foi certeira nesse ponto ao identificar a necessidade de deixar questões patriarcais, morais em religiosas em prol do racionalismo, da ciência e do princípio de dignidade humana. Contudo, a luta ainda não acabou e ainda há muito a ser conquistado e aprimorado, nós mulheres mesmo com os avanços conquistados, seguimos morrendo um pouco todos os dias, entretanto renascemos das cinzas como fênix e seguimos lutando pelo que é nosso por direito, seja ele forma ou material, positivado ou não. 



Anny Barbosa- 1º Ano de Direito Noturno.

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