sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Primeiramente, cabe explicitar que Pierre Bourdieu, sociólogo contemporâneo, possuía uma visão moderna acerca da sociedade, enxergando o Direito para além dos paradigmas habituais - estudou o campo jurídico por meio de elementos ainda não explorados por sociólogos anteriores. Nesse sentido, acreditava que tal instrumento devia considerar as complexidades e as heterogeneidades das sociedades, de modo a solucionar as disputas existentes em seu interior com o maior grau de justiça possível – visava a conciliação de interesses. Assim, é válido lembrar, também, alguns conceitos criados por esse, como a ideia de espaço dos possíveis, a qual é vista como espaços sociais multidimensionais divididos em campos autônomos subordinados às relações de produções econômicas, habitus, que é a predisposição dos indivíduos a agirem de determinadas formas, e poder simbólico, que se refere à autoridade que uma classe detém em relação as demais.

 Posto isso, cabe ressaltar que, no que tange à análise da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54, a qual garantiu, no Brasil, a interrupção terapêutica da gestação de fetos anencefálicos – os quais têm chances mínimas de sobrevivência -, a questão da complexidade e heterogeneidade das sociedades e os conceitos criados por tal foram, notadamente, usufruídos. Para isso, basta analisar os pontos favoráveis à ADPF, os quais funcionam como um habitus de caráter liberal e progressista - uma vez que colocavam a saúde da mulher e o trauma de perder um filho que viveria por semanas ou meses, graças à anencefalia, como fatores primordiais - e os contrapontos desfavoráveis, os quais permeiam um habitus de caráter religioso - já que fatores religiosos faziam com que a mulher não pudesse abortar seu feto. Nesse cenário, haviam dois espaços dos possíveis, cada um com seu habitus. Frente a isso, o Supremo Tribunal Federal encarou como legal a interrupção terapêutica da gestação de fetos anencefálicos, levando em conta, portanto, o direito à saúde e à liberdade de escolha da mulher. Ademais, considerou, ainda,  o direito às crenças religiosas e pessoais de cada um - a mulher gestante de um feto anencefálico poderia optar, a partir de suas crenças, abortar ou não -, ou seja, interesses diversos foram conciliados de modo a não prejudicar o maior número de pessoas possível.

Assim, nota-se que tal decisão estava de acordo com o que Pierre Bourdieu almejava e acreditava, visto que ambos os lados - defensores ou não da ADPF - tiveram suas perspectivas expostas, o que denota a preocupação do STF para com a heterogeneidade da sociedade e com o equilíbrio de interesses - além do fato de muitos conceitos criados pelo sociólogo terem sido utilizados no decorrer do processo. Por fim, considerando que Bourdieu acreditava que o Direito deveria resistir perante ao instrumentalismo, não devendo servir às classes dominantes detentoras do poder simbólico – nesse caso, a classe possuidora do habitus religioso -, a decisão do STF retratou, mais uma vez, os princípios de tal sociólogo.


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