segunda-feira, 29 de agosto de 2022

PIERRE BOURDIEU DESCE AO STF

          O tema em questão é a legalidade da interrupção da gestação da mulher de feto anencéfalo, tendo em vista seus direitos sexuais e reprodutivos, além, é claro, do seu direito à saúde, autodeterminação e dignidade. Neste sentido, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 de 12 de abril de 2012, ou seja, os Ministros acordaram na inconstitucionalidade da interpretação do aborto de fetos sem viabilidade de sobrevivência à luz dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. No entanto, como tal problemática, embora agora com decisão favorável da Suprema Corte, é complexa, observa-se a imprescindibilidade de a analisar com base no pensamento de Bourdieu.

          Em primeiro lugar, o confronto presente na lide em questão é aquele entre conservadorismo e liberalismo dos costumes, isto é, reacionarismo por parte de uma parcela majoritariamente marcada pela religiosidade e reconhecimento de direitos femininos tão arduamente conquistados pelo feminismo, respectivamente. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a configuração do “espaço dos possíveis” é estabelecida pelo raciocínio jurídico dos textos do campo que marcam os limites e as saídas admissíveis para conflitos; a título de ilustração, o CP tipifica o aborto praticado pela gestante ou com o consentimento desta e o aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (até o julgamento do Supremo só era permitida a interrupção da gravidez resultante de estupro ou quando a vida da mãe corre perigo), porém, desde o final da década de 80, alvarás autorizantes de abortos de bebês com malformação parcial ou total do cérebro passaram a ser concedidos por magistrados tupiniquins. Os doutrinadores de Direito Penal concordam com tal tendência, prova cabal disso é Cezar Roberto Bitencourt que afirma que “No atual estágio, a Medicina tem condições de definir com absoluta certeza e precisão eventual anomalia do feto e, consequentemente, a inviabilidade de vida extrauterina. Nessas condições, é perfeitamente defensável a orientação do Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal, que autoriza o aborto quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, ampliando a abrangência do aborto eugênico ou piedoso.” (2022, p. 125). Mediante o exposto, clara é a divergência entre grupos específicos da comunidade social: um acredita que o Brasil não está pronto para conceber o aborto de fetos anencefálicos e outro acredita que já passou da hora desta previsão legal tornar-se hegemônica.

          Em segundo plano, a racionalização do Direito, melhor dizendo, a tentativa de se resolver o caso por meio de somente concatenações de princípios jurídicos, com o objetivo de se alcançar a maior imparcialidade possível dos juízes, mostra-se em três etapas do processo: na tese do Advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), Luís Roberto Barroso, no voto contrário do Ministro Ricardo Lewandowski e na solução do caso representada pelo voto do Relator Marco Aurélio. Barroso invoca os direitos reprodutivos da mulher, Lewandowski, o direito à vida do nascituro, enquanto Marco Aurélio relembra a todos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Depois disso, só resta situar a norma no tempo e no espaço, em outras palavras, historicizá-la. Talvez em 2012, oito anos depois da ADPF ter sido impetrada no Supremo, realmente a decisão do Tribunal em “ratificar” o aborto de fetos sem viabilidade de vida fosse um grande passo em um País marcadamente conservador, porém, depois de uma década, o mundo apresenta-se mais uma vez desfavorável aos direitos reprodutivos das mulheres (revogação de Roe v. Wade pela Suprema Corte nos EUA, como exemplo), é por isso que o STF deve novamente cumprir seu papel de guardião da Constituição de 1988, onde a igualdade de direitos é consagrada, e guiar o continente rumo a uma nova etapa de proteção de prerrogativas jurídicas que será “personificada” na garantia irrestrita do direito ao aborto.

Aluno: Thiago Ozan Cuglieri

Curso/Semestre/Período: Direito/Segundo/Noturno

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