terça-feira, 30 de agosto de 2022

ADPF 54 e a consideração simbólica da existência: os embates e soluções expressas pela construção da língua jurídica e a influência do poder simbólico, à luz da perspectiva de Bourdieu

 Os procedimentos estruturais propostos pelo desenvolvimento da conjuntura simbólica da existência propiciaram a Pierre Bourdieu, bem como a todos aqueles filiados aos seus postulados teóricos, um cenário de quase infinitas possibilidades de ramificação referencial e de adaptação e extensão a diversos outros campos – o que inclui o próprio campo do Direito (o jurídico). Deste fato emanaram aspectos como a existência de variados campos, habitus, espaços dos possíveis, e procedimentos de racionalização e de historicização. A partir das contribuições cardeais de Bourdieu, torna-se viável e até mesmo desejável utilizá-las como meios de visualização da ADPF de número 54, julgada pelo STF, que versa acerca da interrupção da gravidez em casos de anencefalia.

Cabe destacar, inicialmente, que a referida ADPF é um exemplo concreto de embates entre campos e, consequentemente, espaços dos possíveis e poderes simbólicos distintos; isso porque representa a relação conflituosa entre o âmbito individual (dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade e direito à saúde – fatores expressos, inclusive, no Acórdão em análise) e o âmbito coletivo (que se estendeu a duas áreas dois pilares principais: o Direito Penal vigente e os valores defendidos pela sociedade civil). Cada um destes âmbitos (campos), como já dito, reflete áreas delimitadas por circunstâncias internas, chamadas de espaço dos possíveis, que condicionam posturas adequadas e desejáveis (os habitus) caracterizadas por ensejarem e serem ensejadas por formas distintas de poder simbólico.

De acordo com o seu idealizador, os campos consistem em parcelas da realidade simbólica sociedade que sofrem, constante e invariavelmente, alterações por meio de disputas entre poderes e habitus igualmente simbólicos – os quais são bagagens e recursos, que são naturalmente variáveis de acordo com o indivíduo. A partir dos campos, são delimitados aquilo que Bourdieu intitulou de espaços dos possíveis: alterados pelas relações sociais, simbolizam os meios e limites a partir dos quais os agentes podem se dispor para serem capazes de exercer nos campos o poder simbólico. Outra característica imanente é a ideia de que cada campo possui o seu próprio espaço dos possíveis e isso também ocorre no campo jurídico, cujo respectivo espaço é delimitado por fatores como as doutrinas, jurisprudências e normas jurídicas. No entanto, nem todos os fatores presentes em determinado espaço dos possíveis foram criados juntamente com ele. Não raro, alguns são transplantados de outros campos sociais a partir do processo chamado racionalização, que traduz certos fatores externos para a linguagem de outro campo, legitimando-os e resultando na manutenção da homologação (construção constante da linguagem própria de cada campo).

O procedimento evidenciado pode ser exemplificado pela própria ADPF 54, que é marcada pela tradução de certos elementos externos (comuns aos espaços dos possíveis da biologia e do senso comum) para a linguagem própria do campo jurídico. Duas referências elementares para o julgamento em pauta foram a definição da vida (que auxilia a definir a condição de aborto) e os interesses e “bons costumes” da sociedade civil (que também norteiam os posicionamentos). Assim sendo, quando o ministro Alexandre de Moraes se mune do argumento de que a anencefalia não pode ser tida como um viabilizador considerável para tipifica-lo como aborto, ao considerar que a vida de um anencéfalo não possui um futuro certo e proveitoso, ele, apesar de situado no campo jurídico, recorre a meios alienígenas a este, na tentativa de racionalizá-los e, portanto, torná-los argumentos plausíveis. O mesmo ocorre com o ministro Marco Aurélio durante a sua atitude indispensável de recorrer à consideração da dignidade da mulher e da autopreservação humana, dois elementos retirados dos valores do campo social que já foram racionalizados e convertidos em direitos.

O imenso óbice provocado pelos procedimentos de racionalização ocorre a partir do confronto entre distintos espaços dos possíveis, posto que cada qual possui os seus próprios limites e recursos. Considerando o julgamento da ADPF 54 e a causa que o ensejou, o confronto mencionado deu-se a partir do contraste entre duas posturas em relação ao mesmo espaço dos possíveis: uma restritiva (conservadorismo) e outra expansiva (práticas progressistas). Cada um dos opostos, apesar de situado no mesmo campo (o jurídico), apresentam habitus distintos, isto é, formas de ação determinadas e determináveis que são naturalmente diferentes, de modo a promover agitações constantes a partir do manuseio dos mesmos recursos. Consequentemente, ambos os habitus utilizam a mesma linguagem (o espaço jurídico dos possíveis e todos os seus acréscimos) com finalidades diferentes. O habitus conservador, por exemplo, utiliza os artigos 124, 126 e 128 do Código Penal vigente almejando criminalizar a interrupção da gravidez em casos de anencefalia. Em contrapartida, o habitus liberal utiliza direitos fundamentais (como a dignidade) para defender a inconstitucionalidade dessa medida.

Como efeito de tal contraste entre habitus no mesmo campo, tornam-se viáveis mecanismos como a neutralização e a universalização. O primeiro preconiza o uso do plano etéreo, abstrato, para a construção da legitimidade da proposição; de tal modo que aquele que utiliza os artigos do Código Penal acaba por tornar-se apenas um meio passivo de expressão e não um agente que os interpreta ao seu bel prazer. Já a universalização, por outro lado, converte certo desejo individual em uma demanda coletiva; fato este que pode ser exemplificado por meio do uso dos direitos fundamentais enquanto um meio de apoiar-se no coletivo para adquirir legitimidade.

Por derradeiro, após terem sido inseridos no espaço dos possíveis de determinado campo por meio da racionalização, os aspectos (anteriormente estranhos, atípicos) são condicionados pelo tempo a serem objeto de outro meio transformador: a historicização. A ela compete a atualização progressiva e adequada dos componentes dos espaços dos possíveis, de modo que se torna invariável e incontornável. Por meio dela, ocorreu a estrutura basilar do julgamento ainda em análise, posto que uma cláusula penal (consideração culpável do aborto) foi trazida para o mesmo plano de uma demanda social (cenário de anencefalia), que, mesmo não tendo sido originada no ano do julgamento (2012), era uma necessidade notória da época e, ainda na atualidade, não perdeu a sua imprescritibilidade. A partir da adaptação da norma penal à necessidade do presente, através dos procedimentos da historicização, foi concebido o veredicto final: o resultado da luta simbólica ocorrida entre os diferentes habitus que tornou inconstitucional a consideração de que a interrupção do aborto em casos de anencefalia pode ser tida como algo previsto pelo Código Penal e, portanto, penalizado a partir das mesmas normas que punem os casos tipificados de aborto. 


Mario Augusto Monteiro Filho

Nenhum comentário:

Postar um comentário