quinta-feira, 24 de março de 2022

A resposta

 Atenção: a história do seguinte texto possui natureza totalmente fictícia e foi inspirada pela leitura e interpretação da obra ‘’Discurso do Método’’, de René Descartes, da obra ‘’Novum Organun’’, de Francis Bacon, e do filme ‘’O Ponto de Mutação’’, dirigido por Bernt Amadeus Capra.  



             A questão era que não fazia sentido. Não havia sentido. Ana tinha vinte e três anos. Ela era saudável, se exercitava regularmente, consultava uma nutricionista. Nunca tinha fumado ou bebido em toda a sua vida. Não havia histórico de doenças na família. Ela usava casaco em dias frios e não saía de casa quando estava chovendo. Ela nunca tinha ficado resfriada, nem mesmo na infância. Aquela havia sido a primeira vez que Ana ficara doente. A primeira e a última.

            Ana tinha vinte e três anos. Vinte três anos como ela. Ela que fumava ocasionalmente e bebia mais do que ocasionalmente. Ela que não se exercitava e mal comia entre uma sessão de estudos e outra. Ela que queria se formar para recomendar aos outros aquilo que ela mesma não seguia. Ana tinha o seu rosto, a sua idade, a sua genética. Ana tinha muito mais. Ana tinha o juízo, e os sonhos e a bondade. E, ainda assim, era ela quem estava ali. Não Ana.

            Não fazia sentido. Mas a fazia sentir. Até demais.

            Por isso, ela foi atrás das respostas. Ela se trancou em um quarto, não tão grande, para que a solidão não entrasse, mas não tão pequeno, para que as dúvidas não a sufocassem. Um quarto limpo, estéril, insensível. Ela fechou as janelas, para que não pudesse sentir o calor do vento em seu rosto e começou a ler. Ler era encontrar, seus professores diziam. Encontrar respostas, conhecimento, soluções. Ler era encontrar, Ana teria dito. Ela queria ser professora. Ela queria salvar o mundo, mas sabia que isso era muito complicado. Por isso, Ana se contentava em ajudar aqueles que estavam ao seu alcance. Ana tinha muito mais, veja bem. 

            Ela revirou os livros de medicina, pesquisou artigos, leu e releu pesquisas. Ela esmiuçou cada sistema do corpo humano, cada órgão, cada tecido. Categorizou as doenças, procurou entender cada fator que poderia levar à contaminação e cada fator que poderia evitar uma cura. Dias perderam-se em semanas, semanas em meses, até que, por fim, ela obteve as respostas que buscava. Ela entendeu o que havia dado errado, como a doença que levara Ana tinha surgido, como tinha a infectado e destruído a harmonia delicada do seu organismo pouco a pouco, feito uma infestação de cupins sobre uma antiga casa de madeira.

            Só que algumas dúvidas não sumiram. Os ‘’por ques’’, eles permaneceram, escalando a sua garganta, atando suas mãos, prendendo seus pés ao chão daquele quarto. Então, ela continuou a procurar.

            Da ciência, ela partiu para a física, da física para a biologia, da biologia para a química, para a história, para a geografia. Ela visitou cada área do conhecimento, como em uma viajante em uma jornada repleta de escalas, mas com um destino só e incerto. E a cada resposta que ela obtinha, mais dúvidas surgiam, multiplicando-se como as células de um tumor.

            De repente, o problema não estava mais em Ana, estava no mundo. O mundo não fazia sentido algum. A medicina nunca estivera tão avançada e, ainda assim, pessoas morram todos os dias, não por conta de doenças, mas por conta de complicações, algo incontrolável e incurável, apenas evitável, mas, que, ainda assim, não era evitado por ninguém. O mundo atravessava a quarta revolução industrial, as empresas jamais estiveram tão bem equipadas tecnologicamente, e, ainda assim, elas continuavam a extrair, e a minerar, e a destruir o próprio ambiente que lhes fornecia a energia para que o mercado continuasse funcionando. Era para a sociedade estar testemunhando o ápice da proliferação das lutas sociais, a era da liberdade de expressão e do compartilhamento de conhecimento, mas, ao invés disso, eles conviviam com mentiras que se proliferavam como um vírus, opiniões formadas com base em nada e partilhadas como se fossem tudo e causas que eram diminuídas e polidas até poderem se encaixar na tela de fundo de uma propaganda política bonita e vazia. A comida era o suficiente para alimentar a todos, mas nem todos conseguiam comer o mínimo para sobreviver. Guerras nasciam e cresciam, ao contrário das crianças que morriam por causa delas. Regras eram debatidas, e formuladas, e positivadas, só para serem quebradas a todo instante, como estacas no rumo de uma avalanche.

              Estavam todos doentes, todos eles, desfalecendo sem ao menos perceber.

            Mas devia haver uma razão, um agente etiológico, uma justificativa maior que desse sentido a tudo que acontecia. Ela precisava de uma maneira de compreender, de aceitar. Então, ela continuou a procurar.

            Primeiro, ela tentou a religião. Foi reconfortante, mas não o bastante. Então, ela passou para a filosofia. Filosofia, a arte da busca pelo saber. Era sua grande aposta, a sua última esperança de silenciar as dúvidas de uma vez por todas. E o quão frustrante foi se dar conta de que as respostas que lá estavam carregavam em seu ventre novas perguntas, que nasceram na cabeça dela com choros estridentes.

            De repente, o problema não estava mais no mundo. Estava em tudo. No existir, no conhecer, no viver. O sistema era falho, as justificativas eram inúteis e eles eram seres perdidos, famintos e teimosos, que tentavam apagar marcas em folhas de papel já muito amassadas. Dias perdiam-se em semanas, semanas em meses, meses em anos, em todos os lugares, a todo tempo. E tudo que permanecia eram as dúvidas, infecciosas pequenas criaturas berrantes, parasitas em seu ser.

            O conhecimento era repicado e suas fatias eram isoladas, jogadas ao espaço como corpos celestiais. Elas estavam tão distantes umas das outras que era fácil se esquecer que faziam parte da mesma galáxia. Eles estavam tão distantes um dos outros que era fácil se esquecer que faziam parte do mesmo mundo. O mundo estava tão distante dela que era fácil se esquecer que ela fazia parte dele. Mundo tornou-se abstrato. E em sua abstracidade, tornou-se compreensível do modo mais dolorido. O luto dela inchou até o tamanho de um balão com um raio de seis e mil e trezentos quilômetros.

Ela leu e releu, leu e releu, porque não podia parar, não até se livrar do choro das larvas. Por fim, ela retornou a Descartes. Alguns diziam que o problema começou em Descartes. Ela concordava e discordava. O problema existia antes de Descartes, sempre existiria. Descartes somente tentara solucioná-lo, amenizá-lo com pitadas de lógica e fé, e, como todos os outros que decidiram se arriscar, havia conquistado sucesso por um instante e falhado dali adiante. Dessa vez, ela viajou pelas páginas e pousou em trechos que não haviam estado em suas escalas antes. Ela viu Descartes com outros olhos, olhos mais pesados e secos.

            Descartes vira o mundo como uma máquina, o homem como um ser racional, e a existência como uma linha de pensamento. Ela conseguia entender, trancada naquele quarto, distante no espaço. Mas, dessa vez, ela viu além das respostas que ele tentara oferecer. Ela viu as dúvidas que Descartes carregara. Ela notou a voracidade por trás das teorias, a necessidade de compreender, de achar uma justificativa maior. Ela viu Descartes como algo a mais do que um ser racional e, naquela linha de pensamento, ela tocou toda uma existência que se encontrava com a sua.

            De Descartes, ela partiu para Bacon, de Bacon para Kant, de Kant para Weber, depois Marx, depois ela revisitou Platão, Sócrates e Aristóteles. E, em cada um deles, ela encontrou as dúvidas. Ela encontrou uma constante, talvez a única que tinha sentido. Na dúvida, ela encontrou a humanidade, e na humanidade, ela encontrou a dúvida. Ela aceitou, após dias, semanas, meses e anos, que talvez aquela seria uma viagem interminável. Que as repostas estariam sempre um passo a frente. Ou, talvez, um passo a dentro.

            Ana queria salvar o mundo, mas sabia que isso era complicado demais. Ana tinha mais. E ela, ela queria mais. Perguntar mais, procurar mais, encontrar mais. E o único jeito de testar era experimentar. O único jeito de tocar a certeza era tentando senti-la.

            Rose fechou os livros, levantou-se do chão e abriu as janelas.

            O vento da manhã bateu quente contra o seu rosto.

 

Curso de Direito – Campus de Franca – período matutino

Disciplina: Sociologia

Nome: Isabela Maria Valente Capato

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