quinta-feira, 21 de outubro de 2021

 Segundo Bourdieu, não há que se falar em autonomia absoluta do Direito. Tensões

sociais oriundas de outros campos influenciariam o campo jurídico, o qual, por sua vez,

reverberaria naqueles, em um complexo sistema de retroalimentação permanente. Essa

concepção nos é útil para analisar a aplicação de alguns institutos jurídicos tal como vem

sendo feita nos últimos anos no Brasil, sobretudo no âmbito das ações que visam a

responsabilização de agentes públicos.

Para além daquela grande operação de ampla repercussão na mídia, iniciada em 2014 e

que até hoje gera discussões, chama atenção também a autorização, por parte de uma

desembargadora do Tribunal Justiça do Rio de Janeiro, da prisão preventiva do prefeito da

capital do referido estado, no final do ano de 2020. A decisão foi polêmica, gerando

discussões e críticas dentro da comunidade jurídica, inclusive por parte daqueles que não

possuem nenhuma simpatia política ou ideológica pelo prefeito alvo da cautelar em questão.

Muitos opinaram pela abusividade da medida, alegando que, ainda que houvessem indícios de

ilícito, as justificativas apresentadas pela magistrada não seriam suficientes (não se

evidenciou probabilidade de fuga, de destruição de provas, entre outras) para autorizar esse

tipo de prisão.

A (in)validade jurídica dessa medida não cabe a este texto. Porém, é valido analisar

quais fatores por vezes impelem alguns magistrados – e os demais agentes do campo – a

decidirem de forma a empurrar as fronteiras do “espaço dos possíveis”. O histórico

patrimonialista da administração brasileira e a ampla repercussão midiática de grandes

esquemas de corrupção tornam as operações e ações judiciais contra agentes públicos um

investimento de capital simbólico altamente rentável. Isso fomenta os embates internos dos

atores desse campo, que disputam entre si – ou entre subgrupos – espaço para exercerem

poder simbólico suficiente para fazer valer sua respectiva visão, ou seja, para dizer o direito.

O interessante de ser notar é que, para Bourdieu, não seria possível descrever tal

fenômeno apenas sob a perspectiva do campo jurídico. Primeiro porque os agentes deste

trazem para sua atuação, ainda que de forma inconsciente, o habitus assimilado nos outros

demais campos. A racionalização dessa atuação por meio dos processos linguísticos próprios

do campo jurídico não é suficiente para afastar essa influência. Além disso, o capital

simbólico acumulado em tais casos não se origina exclusivamente no campo jurídico, nem se


destina a exercer poder somente neste. A projeção de alguns agentes desse campo nos demais

(como o político e o cultural) ilustra bem esse fenômeno.

Portanto, o método do sociólogo francês permite constatar que essa luta pelo poder

dentro do campo jurídico, simbolizada como o poder de dizer o direito, não é alheia às tensões

sociais que permeiam os demais campos. Sobre o caso em tela, a despeito da conversão da

medida em prisão domiciliar pelo STJ, o STF, de ofício, no ano seguinte, derruba a prisão. A

declaração de Gilmar Mendes toca nessa aplicação ampliada – e deturpada, na opinião de

muitos, inclusive na do ministro – da prisão cautelar como sendo resultado da influência de

elementos sociais extrajurídicos. Segundo o ministro, “o que tem-se verificado,

principalmente no âmbito dos crimes contra a Administração Pública, é uma recorrente

afirmação de vetores axiológicos etéreos e abstratos como o clamor social e a impunidade

generalizada como critérios aptos a lastrear a prisão cautelar”. Ora, esses vetores axiológicos

aos quais o ministro se refere, talvez não tão etéreos e abstratos assim para os campos

extrajurídicos, poderiam servir, para Bourdieu, de boas evidências da autonomia meramente

relativa do campo jurídico.


PEDRO ZANUTTO – DIREITO/NOTURNO


RECURSO ESPECIAL. PRONÚNCIA. FEMINICÍDIO. HOMICÍDIO QUALIFICADO PRATICADO CONTRA GESTANTE. PROVOCAÇÃO DE ABORTO. BIS IN IDEM. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO PROVIDO. 1. Caso que o Tribunal de origem afastou da pronúncia o crime de provocação ao aborto (art. 125 do CP) ao entendimento de que a admissibilidade simultânea da majorante do feminicídio perpetrado durante a gestação da vítima (art. 121, § 7º, I, do CP) acarretaria indevido bis in idem. 2. A jurisprudência desta Corte vem sufragando o entendimento de que, enquanto o art. 125 do CP tutela o feto enquanto bem jurídico, o crime de homicídio praticado contra gestante, agravado pelo art. 61, II, h, do Código Penal protege a pessoa em maior grau de vulnerabilidade, raciocínio aplicável ao caso dos autos, em que se imputou ao acusado o art. 121, § 7º, I, do CP, tendo em vista a identidade de bens jurídicos protegidos pela agravante genérica e pela qualificadora em referência. 3. Recurso especial provido.


(STJ - REsp: 1860829 RJ 2020/0028195-4, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 15/09/2020, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2020).


Pierre Bordieu, importante sociólogo do Direito, destaca que duas coisas são importantes para se alcançar a justiça verdadeira, a observância jurídica, bem como a moral. O ordenamento jurídico brasileiro é adepto dos ideais de Bordieu, uma vez que o Civil Law é o sistema que rege o campo jurídico no Brasil, onde a lei é exaustiva e deve tratar sobre todos os

assuntos da sociedade, podendo os civis fazer tudo o que a lei não proíbe. No entanto, o Civil law também admite outras perspectivas hermenêuticas, baseando-se na moral como ponto secundário de interpretação jurídica.

O julgado em tela trata de uma apelação criminal interposta pelo Ministério Público, onde o mesmo não se satisfez com a condenação de apenas um crime (feminicídio), requerendo o reconhecimento de outro (provocação de aborto). O conselho de sentença do Tribunal do Júri, é composto por pessoas leigas, onde 7 pessoas que geralmente não têm conhecimento jurídico são instituidas para julgar crimes dolosos contra a vida. O crime que fora objeto do julgamento, consistia em uma violência doméstica contra uma gestante, que gerou a morte da gestante, como também o aborto do nascituro. Inicialmente, o Ministério Público pediu, a condenação por esses dois crimes, porém os jurados se valeram da parte técnica do Direito, tapando os olhos para a moral e ao altruísmo. Alegaram __bis in idem_ , ou seja, que condenar o réu por dois crimes nessa situação seria injusto, pois foi feita apenas uma ação criminosa. No entanto, o Ministério Público, ao julgar uma debilidade tanto no campo jurídico (em vista que tal fundamentação é infundada), como no da moral, (onde não se foi capaz de colocar uma vida na balança), interpôs uma meritória apelação ao Superior Tribunal de Justiça, onde pediu o devido reconhecimento

do aborto, que fora negado no(s) tribunal(is) anterior(es).

O STJ, trazendo a devida racionalidade e o equilíbrio entre a razão da lei e o altruísmo da moral, reconheceu a infundamentação do afastamento do crime de provocação de aborto pelo _bis in idem_, entendendo sabiamente que a majorante do feminicídio ser contra a gestante, a pessoa tutelada é exclusivamente a gestante, por estar em um grau de vulnerabilidade, não por estar grávida, logo, ao analisar o aborto como uma violência contra o feto, não há o que se falar em __bis in idem_. Dessa forma, graças ao equilíbrio lógico e moral, preconizado por Bordieu como indispensável para a prática da justiça em decisões judiciais, foi estabelecida a devida punição ao agressor, que não é só da mulher, mas também do feto. Reconhecendo tais fatos, o STJ trouxe justiça para mãe e filho falecido, ainda que insuficiente ao meu ver.


Natã da Silva Dias

Análise de julgado: apologia ao estupro no trote


A magistrada Adriana Gatto formalizou o não reconhecimento a uma ação que denunciava um ex-aluno de Medicina da UNIFRAN por proferir discursos que atacam a imagem, a dignidade e a segurança de alunas que estavam participando de um trote da faculdade.


 A ação de denúncia constitui-se pelo fato do ex-aluno ter executado a prática de proferir discursos que ferem a dignidade da mulher durante um trote que tinha como vítimas as novas alunas do curso de medicina da faculdade. Verbalizando hinos e expressões de cunho machista, misógino, pornográfico e sexista, o ex-aluno que na atualidade já é um médico recém formado, perpetuou por meio de suas atitudes a lógica de violência que sistematicamente vem sendo imposta ao sexo feminino ao longo da formação social da sociedade.


Ao adentrar o posicionamento da magistrada em questão, é possível compreender que ela teve como ímpeto ideais conservadores para justificar a improcedência do caso e legalizar um tipo de comportamento que deveria ser combatido na esfera social com a ajuda do Estado. Utilizando do senso comum e negando toda a história de violência direcionada às mulheres na sociedade, Adriana Gatto é um ótimo exemplo para servir como objeto de estudo a partir da percepção sociológica proposta pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Seguindo o raciocínio de Bourdieu, é possível identificar na postura da magistrada alguns conceitos desenvolvidos pelo autor, como por exemplo, o conceito de Capital e Habitus.


No conceito de ‘’Capital’’, o autor define que este está alicerçado na ideia de que o indivíduo pode ou não possuir capital que lhe garanta recursos e vantagens diante de outros indivíduos que não possuem esse mesmo privilégio. Além disso, fundamenta que o Capital pode ser econômico, social e/ou cultural. A presença do Capital nas suas mais variadas formas está destacada de modo óbvio na conduta da magistrada, pois ao se consolidar como juíza, Adriana Gatto possui autonomia para demandar decisões que julgar cabíveis diante da sua própria percepção sobre os casos que analisa, esse é seu Capital. 


Seu poder simbólico em uma situação como essa, potencializa seu poder de fala, pois a juíza tem em suas mãos o controle do âmbito jurídico para oficializar suas crenças conservadoras enquanto usa como justificativa autoras e estudos que discutem o feminismo seguindo um viés deturpado acerca da essência e da luta desse movimento social. Além disso, podemos nos aliar a outra ideia do autor para continuar desvendando a maneira como a juíza se comporta no campo judicial. 


Sinteticamente, o conceito de Habitus desenvolvido pelo francês, é a norma estruturante que guiará a maneira como o indivíduo age, se posiciona e enxerga a sociedade em que vive, logo, podemos classificar tal conceito como a experiência social que preenche o interior de cada ser. Ao reproduzir seu habitus no campo jurídico, a magistrada Adriana Gatto expõe sua parcialidade no caso justamente por aderir ao uso de referências teóricas que demonstram bem suas posições adquiridas e construídas ao longo de sua vida. Dessa forma, é possível compreender que o Habitus da juíza é força constituinte que legitima seus vereditos nos julgamentos.


Ao compreender a postura da magistrada diante a grave denúncia realizada contra o ex-aluno, entende-se que nenhum fator histórico e social foi levado em consideração no momento da tomada de decisão para a absolvição do acusado. Sendo assim, a dinâmica neste caso evidencia que tanto o meio judiciário como as relações sociais estruturadas pelo Direito, possuem marcadores sociais que conduzem o modo como as narrativas irão desenvolver-se. Embora a denúncia não tenha sido aceita e reconhecida pelo MP, urge reconhecer que no espaço social o caso pode tomar forma. As discussões sobre machismo, misoginia e a ineficiência do poder público presentes no caso abrem novos precedentes que intensificam o debate acerca desses temas, promovendo questionamentos sobre essas questões e trazendo para a sociedade o enfrentamento de problemas sociais que são tão complexos e urgentes, mas que ainda continuam silenciados e invisibilizados. Trazer luz a um caso julgado desta maneira, é a chance de desenvolver o espaço do possível, pois é a oportunidade de demonstrar como o Direito opera sob a coerção de fatores externos e, assim, criar uma nova maneira de lidar com a prática jurídica. É necessário pensar o Direito não como ferramenta de instrumentalização para a prosperidade de lógicas perversas, mas sim como mecanismo que deve e precisa existir para o combate de todo e qualquer tipo de violência presente no espaço social.




PEDRO OLIVEIRA / NOTURNO

SOBRE A LIMINAR COTRA A MEDIDA DO PREFEITO FRANCANO

A matéria de análise é a liminar de um juiz escrita contra o prefeito de Franca, que teria decretado em março deste ano a proibição, dentre outras, das atividades de “lotéricas e correspondentes bancários”. O juiz se posicionou crítico em relação ao posicionamento do prefeito, apresentando argumentos de cunho jurídico, ético e estatístico de que a medida se trata, na realidade, de um equívoco.

A fim de fazer a primeira análise, é primeiro necessário compreender a noção de campos e habitus. Bourdieu coloca o campo como sendo um espaço social simbólico, composto por ocupantes de grupos que divergem em interesses e que, portanto, estão num conflito constante. Por sua vez, o habitus seria um princípio correlativo ao arranjo de práticas e ideias característicos de um determinado espaço social (campo).

Assim sendo, observamos ao longo do texto como o autor se preocupa em colocar a liberdade – expressa através de menções enfáticas à artigos de leis que a enaltece – a cima da segurança, de qualquer ideal de um bem-comum. Em suas palavras: é inadmissível [...] que alguma autoridade, [...], possa suspender as garantias constitucionais dos cidadãos fora dos estritos limites dos estados de sítio ou de defesa, ainda que sob o enganoso pretexto de salvar vidas’”.

Observamos que o habitus do juiz, no campo político e jurídico o qual está inserido, se manifesta um viés mais liberal do direito, ao enfatizar a liberdade sobre a segurança, ou o bem-geral. Em oposição à essa ideia, aqueles que enxergam como objetivo do Estado proporcionar o bem-geral, de fato para salvar vidas, se posicionariam contrários ao posto pelo juiz, evidenciando o epíteto conflituoso entre os ocupantes dos campos – segundo seus interesses.

Partindo para a próxima análise, duas frases do autor me despertaram interesse: sobre o lockdown, éprejudicial, levando o povo à pobreza, à depressão, à queda de imunidade, prejudicando o tratamento de outras doenças, desestabilizando as famílias, comprometendo uma geração de estudantes, etc.”; e “novamente, o maior prejuízo será da população de baixa renda, que mais se utiliza dos serviços das lotéricas”.

Bourdieu nos apresenta um conceito sobre o direito que, para ele, deve ser evitado, o formalismo. O formalismo seria a ideia de um direito fechado em si mesmo, autônomo em relação às pressões sociais. No caso, há um objetivo abstrato, muitas vezes incerto, que ignora seus efeitos paralelos deletérios para chegar ao fim pensado, indiferente quanto às pressões sociais concretas ou potenciais. Vemos, em outra mão, a preocupação do autor do texto em querer adequar a lei segundo as intempéries provocados pelo lockdown, conforme exemplificou.

Concomitantemente, diga-se de passagem, no outro extremo a ser evitado, temos o instrumentalismo, que seria algo como o direito enquanto instrumento, ferramenta, das classes dominantes. A exemplo, temos os bilionários, que tiveram como corolário das medidas de limitações da ação humana no âmbito da economia durante a pandemia – algo que deu a eles inúmeros privilégios no mercado – suas fortunas aumentadas em alto nível1. É evidente que, assim sendo, estariam eles interessados na permanência de leis como as do lockdown.

Para o bourdieusianismo, voltando para a questão dos problemas paralelos do lockdown conforme posto pelo juiz, a dinâmica do direito engendra, claro, uma ordem positiva da ciência, entretanto ela deve ser somada às lógicas normativas da ética e da moral. Pensando dessa maneira, levando em conta a incognoscibilidade de muitas discussões sobre ética, considero que as questões de ética envolvendo o lockdown são demasiadas complexas para a formação de uma posição sólida, pouco podendo saber se, por exemplo, neste caos os fins justificariam os meios.

Como última análise, o juiz, ao longo de sua dissertação, apresenta uma dúvida: como pode um serviço ser considerado essencial em um município e em outro não, em um Estado sim, mas em outro não?”. Para perscrutar sobre a questão levantada, ressalta-se o que Bourdieu diz a respeito de um ideal de um direito que teria como parte um caractere universalizante. De acordo com suas ideias, as normas do direito deveriam ter um caráter universal, porque através de um esforço silogístico, “todas as demandas sociais encontrariam norma correspondente, regulamentadora, não havendo, em consequência, nem lacunas e tampouco antinomias [isto é, antíteses] verdadeiras entre regras” (Pinheiro, 2012)2. A pergunta levantada é prova de que o ideal é de fato inalcançável.

1Por que ricos ficaram mais ricos e pobreza explodiu na pandemia? UOL, 2020. Disponivel em: <www.economia.uol.com.br/noticias/rfi/2020/09/30/por-que-ricos-ficaram-mais-ricos-e-pobreza-explodiu-na-pandemia.htm>. Acesso em: 13 de out. de 2021.

2PINHEIRO, Wecsley dos Santos. Reflexões sobre o campo jurídico a partir da sociologia de Pierre Bourdieu. Jus.com.br, 2012. Disponivel em: <www.jus.com.br/artigos/21579/reflexoes-sobre-o-campo-juridico-a-partir-da-sociologia-de-pierre-bourdieu/2>. Acesso em: 13 de out. de 2021.

Fernando Carvalho da Silva

Noturno.

 O caso de uma forte apologia ao estupro num trote universitário em 2019 na cidade de

Franca, mostra muito bem como os capitais culturais de Bourdieu atuam nas pessoas. Um

médico formado na UNIFRAN foi convidado a participar do trote de recepção de calouros,

entretanto o discurso proferido pelo homem causou desconforto entre as pessoas. Tal discurso

do requerido, evidentemente estava carregado de ódio a comunidade gay, ataques as pessoas, e

principalmente a fortíssimas apologias a estupros.


“...E prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver

oportunidade, sem nunca ligar no dia seguinte... Juro solenemente nunca recusar a uma tentativa

de coito de veterano (inaudível...) mesmo que ele cheire cecê vencido e elas, a perfume barato."

Essas loucuras foram apenas parte do discurso vociferado por Matheus Gabriel Braia no evento.

Apesar de toda a apologia a crimes, ofender pessoas e a dignidade humana, a juíza Adriana

Bonemer inocentou Matheus do processo levado a justiça pelo Ministério público do Estado de

São de Paulo. O Ministério ainda “recomendou” que o médico pagasse quantia equivalente a

40 salários mínimos, mas nada houve.


O que mais surpreendente em tudo isso, são os argumentos utilizados por Bonemer para

julgar improcedente a ação contra Matheus. A decisão e argumentos da julgadora estavam

cheios de diversos habitus que por sua vez refletem os capitais que atuam no campo social. “Há,

inclusive, feministas críticas do próprio movimento, como Camille Paglia, que atesta que a

decadência de uma civilização é marcada pelo descontrole moral, pela ode pública à corrupção

sexual.” é evidente que o habitus da magistrada a predispõe a considerar o feminismo e as

reinvindicações das mulheres meramente como ideias depravadas e de corrupção moral, o

capital cultural que perpetua a cultura do estupro e ideias machistas afetara a decisão da juíza a

ponto de até mesmo esquecer que, apenas o fato de estar numa posição de destaque foi uma

conquista oriunda do movimento que ela critica.


A perspectiva sociojurídica do caso do trote na UNIFRAN revela que o habitus e os

mais diversos capitais, principalmente o cultural, afetam as decisões jurídicas. Bourdieu estava

correto nas suas argumentações a respeito do habitus e de tudo aquilo que o cerca. Reitero que

os argumentos utilizados pela juíza demonstram que sua visão de mundo (dominada pelo

habitus) cegou seu discernimento sobre o caso concreto.


João Vitor Pereira de Oliveira- direito diurno

ADPF 467 - Prefeitura de Ipatinga e Bourdieu

 A PGR impetrou ADPF contra a Prefeitura Municipal de Ipatinga-MG em função de a lei municipal 3.491, de 28 de agosto de 2015, pois esta, em seu artigo 3.º, determinava a proibição de o Poder Executivo Municipal adotar estratégias educativas em temas relacionados à diversidade de gênero e/ou ideologia de gênero e educação sexual. A PGR elencou diversos preceitos constitucionais contrariados pela lei supracitada (direito à igualdade, vedação à censura, laicidade do Estado, competência privativa da União para legislar sobre Diretrizes e Bases da Educação, pluralismo de ideais e de concepções pedagógicas, direito à liberdade de aprender, ensinar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.


Ao lermos o voto da procedência e adequação da ADPF, proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, é possível identificar relações com os conceitos do capítulo “A Força do Direito – Elementos para uma sociologia do campo jurídico” da obra “O Poder Simbólico”, de Pierre Bourdieu.


Em seu texto, o Ministro Gilmar Mendes enfatiza que a ADPF é o instrumento adequado para o caso em questão, pois:


- preenche espaço residual expressivo no controle de constitucionalidade


- supre eventuais demoras na definição de decisões sobre importantes controvérsias constitucionais e;


- relevância de interesse público presente no caso.


No transcorrer dos argumentos, é citada a LDB da Educação, que prioriza em seu artigo 3.º pluralismo de ideias, respeito à liberdade e apreço a tolerância. 


Bourdieu propõe que a “prática teórica da interpretação de textos jurídicos não  


tem nela própria a sua finalidade, diretamente orientada para fins práticos, ela mantém a sua eficácia à custa de uma restrição de sua autonomia”. A ADPF, combinada com o conteúdo da Constituição no tocante à distribuição de competências é um bom exemplo – lei municipal tenta limitar a possibilidade de abrangência de opinião em suas escolas contrariando o preceituado pela Constituição e pela LDB federal. Além disso, tal proposta de lei caminha de forma contrária aos ideais de liberdade, respeito à pluralidade de opiniões e prática de tolerância da Carta Maior. A PGR e o STF lançam mão de instrumento jurídico existente com o intuito de proibir tal lei, até porque o relevante interesse público é nítido, pois outros municípios também tentaram propor lei com conteúdo semelhante (Foz do Iguaçu – PR). Assim, os fins práticos propostos por Bourdieu são atingidos com a ADPF – autonomia de instrumentos jurídicos para contrapor à preconceituosa lei são poucos mas os que existem são dotados de eficácia de expor os preconceitos existentes nos representantes do povo no legislativo de uma das cidades do aço mineira.


Em relação ao habitus jurídico, Bourdieu reconhece que “assim como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza as instâncias judiciais, os poderes e suas interpretações, bem como normas e fontes que conferem suas decisões.” De forma adicional, “a coesão do habitus espontaneamente orquestrado dos intérpretes é aumentada pela disciplina de um corpo hierarquizado que põe em prática procedimentos codificados de resolução de conflitos”. Dentre as fontes que serviram de base argumentativa para as leis federais citadas por Gilmar Mendes, destacam-se normas e tratados internacionais proibitivas de discriminação dos quais o Brasil é signatário, como:


- Declaração Universal dos Direitos Humanos;


- Convenção Americana dos Direitos Humanos;


- Pacto Internacional sobre Direitos Civis.


Percebe-se, assim, que a coesão do habitus, ao menos na esfera federal, tem sido pautada com razoabilidade pelo respeito e pelo combate à intolerância de esferas estaduais e municipais (alguns juízes de primeira instância acham que movimentos feministas subvertem a ordem e produzem degradação moral, conforme outro julgado proposto pelo Professor Agnaldo).


Ao analisarmos o campo jurídico sob a ótica de palco de conflitos entre a lógica da ciência e a lógica da moral, pode-se conferir o papel da lógica ao aparato 


instrumental jurídico da União e da carta Maior no caso da ADPF 467. A constituição federal abarca o respeito e a tolerância como valor fundamental à dignidade humana sob a égide de que a nação brasileira caminha consoante às necessidades mundiais de respeito aos direitos humanos. No microcosmo municipal, a Câmara Legislativa de Ipatinga efetuaria o papel de tentar impor lógica moral, em que apenas um dos dezenove vereadores da casa supracitada votou contra a lei ().


De acordo com Bourdieu, a “universalização é um mecanismo poderoso a partir do qual se exerce a dominação simbólica ou a imposição de legitimidade de ordem social. A norma jurídica tenta consagrar em forma de um conjunto coerente de regras oficiais os princípios práticos de um estilo de vida simbolicamente dominante, tendente a informar as práticas dos agentes. Tal efeito de normalização aumenta a autoridade social que a cultura legítima e seus detentores já exercem para dar eficácia prática à coerção jurídica.”  A LDB propõe que a tolerância e a pluralidade de aprendizado é valor social para a formulação de políticas públicas de ensino, e tal valor possui simbologia poderosa para confrontar intolerância em geografias pontuais. A coerção jurídica é atingida pela legitimidade cultural da pluralidade abarcada por lei federal e por instrumento de suspensão legal local.


Por fim, Bourdieu trata da “regra de direito capaz de supor a conjunção da adesão a valores comuns marcada ao nível do costume, pela presença de sanções espontâneas coletivas como a reprovação moral.” A casa legislativa de Ipatinga tentou suprimir das práticas locais educacionais a tratativa de assuntos de ideologia de gênero, em uma clara tentativa de dar a esses temas qualificações reprováveis sob o ponto de vista moral. A coletividade elegeu vereadores que entendem que é sancionável o município abarcar assuntos do tipo em sua educação de base. Talvez as verbas de gabinete devam ser mais bem utilizadas na contratação de assessores jurídicos, com o intuito de poupar tempo da Procuradoria do município e de propor leis mais úteis e respeitosas aos interesses difusos e coletivos. 


CURSO: DIREITO – Período Noturno

Disciplina: Sociologia do Direito

Ricardo Camacho Bologna Garcia