segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Recurso Extraordinário (RE-RG) 1.017.365: o direito à terra em face do “marco temporal”

 

            Cerca de 1 a 10 milhões de indivíduos é a quantidade estimada de nativos que habitavam o território brasileiro quando os portugueses estabeleceram seu domínio sobre essas terras. Durante os primeiros cem anos de colonização, nenhum direito foi assegurado a esses povos considerados sem alma, legitimamente dizimados por guerras, doenças e políticas de assimilação, até que finalmente fosse iniciado um processo de proteção e identificação dessas comunidades como titulares de direitos. A criação do Serviço de Proteção ao Índio em 1910 foi o marco que deu início ao desenvolvimento de legislações que incluíssem os povos originários, como o direito à terra, positivado na Constituição de 1934. A partir desse reconhecimento mínimo, movimentos indígenas ganharam ainda mais força e passaram a buscar participação ativa nos parlamentos e na assembleia constituinte até que, por fim, fosse reconhecida na Constituição Federal de 1988 a condição multicultural e pluriétnica desses sujeitos e o seu direito de permanecer como tal. Conhecer suas necessidades particulares e saber que é possível exigi-las é o que Boaventura de Souza Santos vai defender como indispensável para a transformação do direito em ferramenta de luta.

            De acordo com o pesquisador português, o pensamento moderno possui um caráter abissal que divide a realidade social em dois universos distintos. Nesse sentido, ele afirma ser necessário a desconstrução desse caráter único dos conhecimentos tidos como válidos, científicos e universais, mediante o estímulo de uma educação intercultural crítica. A capacitação jurídica, ou seja, o alargamento do número de sujeitos capazes de interpretar a ciência jurídica e solucionar conflitos quando a resposta na justiça oficial é inacessível, é o instrumento que possibilitará emergir o pensamento “pós-abissal”, mobilizador de perspectivas emergentes e potencializador dos direitos não-hegemônicos. No entanto, a atual conjuntura, por ainda não ter experenciado essa revolução epistemológica, acaba sendo limitada pelo o que o autor vai chamar de “morosidade ativa” da justiça, logo, a intencional “não decisão” dos tribunais, de escolher não decretar uma sentença e, para isso, utilizar de todos os mecanismos possíveis para atrasar a resolução do problema.

            Esse uso de escusas protelatórias em processos que envolvem conflito de interesses pode ser facilmente observado no caso que discute o destino das terras indígenas em face do “marco temporal”, em 2021. O pedido de reintegração de posse, que tramita no Supremo Tribunal Federal sob Recurso Extraordinário de repercussão geral - (RE-RG) 1.017.365 -, foi movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina contra a Funai e o povo Xokleng. Por se tratar de uma decisão que será referência para todos os casos envolvendo terras indígenas e, além disso, dialoga com os interesses da bancada ruralista, está em debate o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental das comunidades nativas: o acesso à terra. O julgamento pelo STF, que já havia sido adiado, foi suspenso até que o magistrado decida emitir seu voto, que, na prática, não possui prazo para ser devolvido. Nesse sentido, fica evidente a ânsia dos responsáveis por encaminhar uma decisão em escapar de um possível fim, especialmente quando a questão compreende uma problemática tão antiga e particular da realidade brasileira.

            Recusar uma resolução óbvia que saia em defesa de um direito originário, anterior ao próprio Estado, demonstra que perspectivas excludentes de atropelamento dos direitos fundamentais estão conquistando cada vez mais espaço político e jurídico. O silencio que favorece o agronegócio também legaliza usurpações, fomenta invasões, põe em risco a preservação ambiental e climática e traz de volta desigualdades que passaram por séculos de luta para serem superadas. Isso só confirma a urgência de transformar a morosidade dos tribunais em um modo de afirmação do discurso não hegemônico e enfrentamento democrático para, finalmente, atingir os direitos básicos daqueles ainda alheios ao saber jurídico.

Giovanna Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino

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