domingo, 21 de novembro de 2021

 

A discussão a respeito da mobilização do Direito como estratégia de ação coletiva é extremamente tensa e requer análises criteriosas e não superficiais. Muitos autores, como Garapon e Maus, realizaram diversas investigações acerca do fenômeno da mobilização das estruturas judiciais. No entanto, pode-se perceber que ambos dão muita notoriedade ao protagonismo dos tribunais, deixando de prestigiar a forma como essas mobilizações são fruto, profundamente, da ação incitante dos sujeitos e grupos sociais, uma vez que o Judiciário só age (ou só deveria agir) mediante uma provocação social. No que se refere a essa importância dada aos sujeitos e grupos sociais, o escritor McCann realizará uma investigação notória, buscando colocar o enfoque nos indivíduos e ultrapassar a questão do protagonismo dos tribunais.

De acordo com as perspectivas de McCann, a mobilização do Direito deve ser compreendida como “ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores”. Dessa forma, pode-se inferir que o Direito é (ou teoricamente deveria ser) chamado à ação/participação por meio de lutas e não por mera escolha dos tribunais, daí a importância de se reconhecer que o protagonismo não está nos tribunais, e sim nos indivíduos ou grupos sociais. O autor Frances Zemans menciona em seus escritos que “a lei é mobilizada quando uma necessidade ou desejo é traduzida em uma reinvindicação de lei ou afirmação de direitos legais”. Assim, é possível constatar que os dois autores tomam uma postura muito plausível – descolam o foco dos tribunais para os usuários (aqueles que incitam o Direito).

Ademais, em uma passagem relevante de sua obra, McCann estabelece que “os tribunais são reativos (reagem à provocação. E os atores sociais são os provocadores), mas exercem poder, e suas escolhas são muito importantes para o funcionamento de um regime político. E seu poder é complexo, mais do que mera fiscalização”. A partir dessa menção, torna-se capaz induzir que as competências do poder Judiciário são profundas, não cabendo a ele ser somente o guardião da Constituição, o poder judicial pode e deve agir para resguardar os direitos fundamentais dos indivíduos. Nenhuma lesão ou ameaça a direitos, em especial, os direitos consagrados na Constituição poderão ser afastados da apreciação do Poder Judiciário.

Sendo assim, é necessário a compreensão de que o Judiciário não atua por livre e espontânea vontade (pelo menos não pode e não deveria), e não age por demandas não existentes. Esse poder, segundo o autor, só age mediante demandas que estão presentes no âmbito social, político e histórico por exemplo. Ao estabelecer essa linha de análise, McCann realiza uma respeitável contribuição – retira toda a atenção e notoriedade dos tribunais, colocando-o apenas como “um ator a mais no circuito complexo das relações de poder” (é a desmitificação, retirada dessa perspectiva da exclusividade dos tribunais). Contudo, não podemos deixar de adotar precauções acerca dessa atuação judiciária, tendo em vista que esse poder pode utilizar de prerrogativas sociais e democráticas para extrapolar imensamente suas áreas de atuação e tornar os sujeitos meros coadjuvantes do espaço social. 

Além disso, para McCann, a mobilização do Direito não é um esvaziamento democrático. Pelo contrário, ela é uma expressão do vigor democrático presente em uma sociedade – grupos e pessoas se valendo do Direito como uma ferramenta de concretização de direitos previstos democrática e constitucionalmente. McCann acredita que a concepção da consciência do Direito, a percepção dos nossos direitos fundamentais é o que move as pessoas a mobilização direito e defenderam uma causa, tentando modificar ou criar normas que assegurem a vida e dignidade humana. A busca pelos tribunais é uma decisão política de indubitável relevância – é ter conhecimento de que os conselhos judiciais não são mero espaço de bacharéis, é sim o espaço do povo, dos cidadãos.

Seguindo as prerrogativas de McCann, pode-se conceber como uma petição do tribunal de justiça do estado de São Paulo sobre a Apologia ao estupro em um trote da UNIFRAN é acontecimento visível de uma mobilização do Direito. O trote referido trata de um vergonhoso episódio acontecido na cidade de Franca, na qual o Ministério Público (ator que mobiliza o direito – nesse caso um agente institucional, que representa a sociedade como um tudo e, teoricamente, zela pelo cumprimento dos preceitos constitucionais) entrou em ação judicial contra um ex-aluno da Instituição, mencionando que:

o requerido, ex-aluno da UNIFRAN, explorando momento de comemoração por aprovação em vestibular de Medicina na referida instituição, fez com que calouros entoassem, coletivamente, durante o trote universitário, a pretexto de se tratar de hino, expressões de conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico, expondo-os à situação humilhante e opressora e ofendendo a dignidade das mulheres ao reforçar padrões perpetuadores das desigualdades de gênero e da violência contra as mulheres”.

Assim, é possível inferir que o judiciário não pode se abster de atuar mediante mobilizações como estas. Em uma das partes do referido julgado, é estabelecido que “a conduta praticada pelo requerido ultrapassou os limites toleráveis de uma simples brincadeira, pois reforçou o machismo e colocou a mulher em posição de inferioridade. O requerido reproduziu ideias que remetem à cultura do estupro, estimulando agressão e violência”. Como não induzir que o poder Judiciário atue mediante essa situação degradante? Como não induzir que o Judiciário tome decisões mediante uma situação em que direitos fundamentais são violados? Como não induzir que o Judiciário atue mediante essa ridicularização exposta?

Sem dúvidas, não podemos deixar de realizar uma vigilância ferrenha à atuação do poder judicial. No entanto, temos que observar que a mobilização do Direito é (e deve ser) uma maneira de se tentar buscar a concretização dos direitos individuais ou grupais de toda a sociedade. Ao incitar o poder Judiciário, como no acontecimento mencionado acima, estamos demonstrando que somos sujeitos, ou melhor, cidadãos sedentos de justiça e ânimo em busca das garantias constitucionais/legais. Mobilizar as estruturas judiciais são formais de demonstrar a todos que o campo do Direito não pode e (não deve) está à mercê de bacharéis e homens usando gravatas. Mobilizar o Direito é demonstrar que o povo está preparado para o combate, ainda que com armas totalmente inferiores. Mobilizar o Direito é tentar materializar os direitos estabelecidos e democratizar de fato a vida social de uma sociedade.

LIVIA GOMES - NOTURNO - 2º PERIODO                         


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