domingo, 17 de outubro de 2021

Pierre Bourdieu & Juíza de Direito: Dra. Adriana Gatto Martins Bonemer

Processo disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/decisao-juiza-franca-cpc-mp-sp.pdf>

Pierre Bourdieu foi um dos nomes mais emblemáticos da sociologia francesa contemporânea, sendo titular da cátedra de sociologia no Collège de France e buscando, ao longo de sua trajetória, conciliar a análise da realidade objetiva com a da subjetividade – o que convencionou-se chamar de “construtivismo estruturalista”. No construtivismo encontra-se o habitus, que pode ser entendido como os esquemas mentais de percepção, pensamento e ação que caracterizam o comportamento dos indivíduos. Enquanto o conceito de estruturalismo implica em uma formação denominada campo, que é sistêmica e age sobre os agentes sem que eles tenham consciência ou possam nela intervir.

Ademais, é importante notar as influências sofridas por Bourdieu. De acordo com Philippe Corcuff (As novas sociologias, p. 56): “[...] da obra de Marx, Pierre Bourdieu tomou a noção de realidade social como um conjunto de relações de forças entre grupos sociais historicamente em luta uns com os outros [...] da obra de Max Weber a noção de que a realidade social é também um conjunto de relações de sentido, que ela tem, então, uma dimensão simbólica”. No quesito do habitus, há evidentemente uma retomada das ideias de Émile Durkheim, uma vez que nesse conceito, as estruturas sociais se imprimem na mente dos indivíduos e se interiorizam. Essas estruturas interiorizadas se desenvolvem ao longo da vida – iniciando-se na infância, como herança da família e da educação, e prolongando-se para a vida adulta, o que constituí uma espécie de acumulação de bagagem que possibilitará as diversas ações e atitudes adotadas pelo sujeito.

Mas é no conceito de campo que reside um dos pontos mais importantes desse sociólogo francês. Por campo, como já mencionado, pode-se depreender a ideia de esferas autônomas da vida em sociedade, oriundas de uma construção histórica e que envolvem relações sociais e de produção próprias, além de sistemas hierárquicos e de dominação – ou seja, há o campo jurídico, econômico, político, etc. Isto tudo posto pode ser encontrado na análise que o sociólogo faz do Direito e mais precisamente, do campo jurídico, em seu livro “O poder simbólico”, no capítulo VIII, chamado de “A força do direito – Elementos para uma sociologia do campo jurídico”. Logo no início do texto, Bourdieu, ao pensar uma ciência rigorosa do direito, busca se distanciar do formalismo e do instrumentalismo. O formalismo remonta à teoria pura de Kelsen, estando a autonomia do Direito distanciada da realidade social; e o instrumentalismo remonta a Marx, que conceberia o Direito “como um reflexo ou um utensílio ao serviço dos dominantes” (BOURDIEU, p. 209).

Ainda no texto, Bourdieu (p. 224) diz que “[...] o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das <regras possíveis>, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa. ” E prossegue: “O trabalho de racionalização, ao fazer aceder ao estatuto de veredicto de uma decisão judicial que deve, sem dúvida, mais às atitudes éticas dos agentes do que às normas puras do direito, confere-lhe a eficácia simbólica exercida por toda a accção quando, ignorada no que têm de arbitrário, é reconhecida como legítima”.

Logo, a partir desse trecho e dos conceitos elaborados por Bourdieu já mencionados, é possível analisar a sentença proferida pela juíza Dra. Adriana Gatto Martins Bonemer. O Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública contra o médico Matheus Gabriel Braia, ex-aluno da Universidade de Franca (UNIFRAN), que durante o trote da instituição em questão conduziu o seguinte juramento: "Eu prometo infernizar qualquer um dos bastardos, invejosos de subcursos como os da odonto e dos copiões de merda da FACEF, chupa FACEF, sem nunca dar razão a nenhum daqueles burros, filhos da puta, desgraçados de merda! E prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade, sem nunca ligar no dia seguinte. As bixetes: Eu prometo nunca entregar meu corpo a nenhum invejoso, burro, frouxa, filho da puta da Odonto ou da Facef. Repudio totalmente qualquer tentativa deles se aproveitarem e me reservo totalmente a vontade dos meus veteranos e prometo sempre atender aos seus desejos sexuais. Compreendo que namoro não combina com faculdade e a partir de hoje sou solteira, estou à disposição dos meus veteranos. ”. “Trecho de vídeo: inaudível... por suas reputações, mesmo que eles sejam desprovidos de beleza ou cheire a ovo vencido. Juro solenemente nunca recusar a uma tentativa de coito de veterano (inaudível...) mesmo que ele cheire cecê vencido e elas, a perfume barato."

Mais revoltante do que o juramento que faz apologia ao estupro (feito por um médico que muito provavelmente atende mulheres), é a sentença da juíza em questão. Fica evidente, durante todo o julgado, que a atenção da Dra. Bonemer não se volta ao acusado e sim, aos requerentes do processo, numa constante tentativa de deslegitimá-los. Em síntese, um dos pontos trazido pelo requerente, o MPSP, é: “o requerido, ex-aluno da UNIFRAN, explorando momento de comemoração por aprovação em vestibular de Medicina na referida instituição, fez com que calouros entoassem, coletivamente, durante o trote universitário, a pretexto de se tratar de hino, expressões de conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico, expondo-os à situação humilhante e opressora e ofendendo a dignidade das mulheres ao reforçar padrões perpetuadores das desigualdades de gênero e da violência contra as mulheres”. De modo que toda a argumentação da juíza é pautada em uma visão pessoal, claramente antifeminista e conservadora, dando a entender como absurdo o desejo de indenização por danos morais, pois, como dito pela magistrada: “A inicial retrata bem a panfletagem feminista, recheada de chavões que dominam, além da esfera cultural, as universidades brasileiras. É bom ressaltar que o movimento feminista apenas colaborou para a degradação moral que vivemos, bem exemplificada pelo "discurso/juramento" que ora se combate ”

Dessa forma, a autoridade em questão julgou improcedente a ação, após sustentar seus argumentos em figuras como a da deputada estadual de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, do PSL, que dentre as diversas polêmicas em que está inserida, ficou conhecida principalmente por propor que os alunos filmassem professores que estivessem praticando “doutrinação”. Portanto, voltando-se a Bourdieu, a decisão da juíza seria proveniente de nada menos do que o habitus – as estruturas estruturadas e estruturantes - por ela construído ao longo de sua vida. Conhecedora da lei e detentora dos meios jurídicos disponíveis, como a linguagem jurídica, e inserida em um campo jurídico marcado por dominação e hierarquias, a magistrada pauta sua decisão e utiliza os meios e recursos jurídicos disponíveis de forma a validar a sua visão de mundo. De maneira que estando na posição de poder que ocupa, há a tentativa de impor essa visão pessoal aos outros e legitimá-la em um âmbito jurídico, afinal, é ela que profere as sentenças que afetam as vidas de outras pessoas.

 Evidentemente, o caso gerou revolta e uma nota de posicionamento da OAB Franca, que em seu início diz: “Não existiu, por parte da sentença, fundamentação compromissada com o papel desempenhado pela estrutura legislativa, judiciária e acadêmica na construção de políticas públicas e práticas igualitárias em todos esses ambientes". "O discurso utilizado pela decisão nos demonstra como o sistema de justiça, também na figura de magistradas e magistrados, tem resistido em garantir uma prestação jurisdicional nos casos que envolvem as variadas violências de gênero. ”.

Laura de Melo Ruas

Direito Diurno

 

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