segunda-feira, 18 de outubro de 2021

 Análise de julgado à luz do pensamento de Pierre Bordieu

A pandemia do Covid-19 desvelou realidades perversas que até então obtinham menos atenção midiática e social, como é o caso das pessoas em situação de fome no Brasil, que aumentaram em 84,4% de 2018 para 2020, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar. O combate à fome no país, que já estava abalado após a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, tornou-se ainda mais precário, o que culminou na volta do Brasil ao Mapa da Fome da FAO.

É neste cenário de miséria que o furto famélico - quando o réu furta por não ter o que comer - ganhou destaque no âmbito do Judiciário, inclusive em instâncias superiores. Assim, no presente texto, busca-se correlacionar o julgado Resp. N° 1936078-SP (2021/0130875-7), atinente a esse tema, com as categorias conceituais de Pierre Bordieu estudadas no início da disciplina de Sociologia do Direito. 

Inicialmente, há de se destacar que Bordieu inovou ao pensar o campo jurídico (e os demais) como sujeito a condicionantes internas e externas, em condição de relativa autonomia perante fatores econômicos. Isso porque outras duas correntes difundidas se colocam em postos opostos: Kelsen, por exemplo, acreditava em um formalismo sustentador da absoluta autonomia do Direito; já Marx, por outro lado, via a superestrutura jurídica como um pilar da opressão nas relações produtivas, reduzindo o Direito a uma função dentro do contexto socioeconômico, isto é, nenhuma autonomia.

A partir disso, chega-se a uma série de conceitos fundamentais. A chamada eficácia simbólica seria o que o autor concebe como um conjunto de esforços, dentro do campo jurídico, para gerar e manter um tom  de legitimidade e oficialidade, mesmo quando se trata apenas de um verniz. Ela confere credibilidade ao sistema (reforça o “rule of law”), baseando as noções de que a justiça é disciplinada e sem espaço para arbitrariedades, por ser sustentada em uma Constituição sólida e em uma coerência na atividade jurisprudencial. Ademais, tal eficácia é composta pelo capital simbólico, que não se restringe ao capital econômico, mas, sim, abrange recursos ligados à erudição, ao conhecimento e à cultura que alguém detém. Ao acumular capital simbólico, o indivíduo - ou instituição - alça um poder simbólico necessário para ocupar posições de distinção social, como acontece no campo jurídico, dado o imenso prestígio de determinados cargos. Ao se tratar de pessoas, é evidente que, além de sua subjetividade estritamente individual, carregam uma bagagem (habitus) resultante de suas vivências nos meios sociais ao longo da vida e que molda a sua visão de mundo.

Feitas as considerações do pensamento de Pierre Bordieu, é possível visualizar a sua presença na prática. No julgado pré-mencionado, o réu, em condições posteriormente comprovadas de necessidade, furtou um perfume cujo valor é R$59,90, sendo caracterizado como reincidente específico. De início, um aspecto já deveria gerar estranhamento: caso o sistema judicial apresentasse, de fato, celeridade e coesão, um furto como esse não deveria ter de chegar ao STJ. Isso está ocorrendo, de acordo com o próprio Ministro relator do caso, Sebastião Reis Júnior, devido a juízes de instâncias inferiores estarem desrespeitando a jurisprudência que considera o princípio da insignificância.Tal elemento justifica, na prática, o porquê da eficácia simbólica carregar esse adjetivo no nome. 

Além disso,como já comentado, a pandemia gera uma crise que torna a vida de muitos brasileiros uma luta diária pela sobrevivência. Realidade esta, inimaginável para muitos magistrados, que,  detentores de tamanho poder simbólico acumulado ao longo de sua trajetória e constituídos por um habitus alheio à escassez, parecem habitar outro Brasil. Daí, não é de se espantar as decisões proferidas de modo desconexo à realidade árdua enfrentada pelo país. Portanto, à luz do caso concreto, torna-se evidente que admitir um caráter meramente dedutivista no trabalho dos operadores do direito é um mito. Pelo contrário, além do tal distanciamento da realidade da população brasileira, capaz de distorcer a visão, os operadores do Direito estão inseridos em uma rede de diferentes posições ocupadas, cada uma delas com sua versão dos fatos, necessariamente antagônicas e conflituosas por natureza, como no tocante à dosimetria da pena de antes, realizada com base em alegações discutivelmente subjetivas acerca da personalidade do agente. Nesse sentido, se posiciona o sociólogo: “as condutas dos agentes jurídicos podem referir-se e sujeitar-se mais ou menos estritamente às exigências da lei, ficando sempre uma parte ao arbitrário, imputável a variáveis organizacionais como a composição do grupo ou atributos dos que estão sujeitos a uma jurisdição [...]”. 

Por fim, é nesse caos “organizado” que o sistema judicial continua operando, sustentado pela eficácia simbólica e por falsas noções de neutralidade e total idoneidade de decisões proferidas. Nesse caminho, o campo jurídico prossegue no esforço de se permanecer distante do cidadão comum, seja pela linguagem anfibológica e rebuscada, seja pelo capital simbólico desses espaços de poder, como se a verdadeira equidade fosse um conceito inteligível apenas para os instruídos, para os “cidadãos de bem” e outras expressões vazias. Mas, ao mesmo tempo, tamanha crise humanitária vivida expressa que esse distanciamento não consegue ser um completo isolamento, tal como foi mostrado no exemplo trabalhado dos furtos famélicos, reiterando a ideia de autonomia relativa, como preconizado por Bordieu.


Isabela Mansi Damiski - Direito Diurno


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