segunda-feira, 18 de outubro de 2021

As necessidades hierárquicas do direito

     O pensamento de Pierre Bourdieu sobre a força do direito, circunda uma importante característica da ciência jurídica em vigor atualmente: o caráter qualitativo individual das interpretações do que é proposto pelas leis e como devem ser feitas as suas aplicações. Nesse sentido, podemos compreender que Bourdieu alega uma necessidade de autoafirmação proveniente das visões dos magistrados e da classe que domina o poder jurídico, a fim de garantir que os seus interesses sejam correspondidos em todas as decisões propostas.

    A partir dessa ideia, é possível analisar a decisão judicial imposta pela juíza Dra. Adriana Gatto Martins Bonemer no processo de número: 1020336-41.2019.8.26.0196, no qual a magistrada aplica uma sentença à uma acusação de machismo e violência de gênero que contraria a visão de inúmeras mulheres pertencentes aos movimentos feministas. Nesse processo, o requerido é acusado de proferir dizeres machistas e ideias que oprimem as mulheres pois as submetem a condição de subalternas e dominadas pelos homens. O caráter machista, se faz presente, uma vez que o domínio dos corpos femininos é relacionado aos homens que rodeiam as mulheres e não a vontade individual de cada mulher.

    Para tal decisão, a operadora do direito aplica uma série de conceitos pessoais e uma argumentação baseada nos problemas das sociedades que não tratam o sexo como algo proibido. Ela afirma ato sexual é uma subversão das características sociais que deveria ser combatido e que em sociedades que assim o fazem, o seu funcionamento é mais orgânico. Para isso, utiliza citações de livros escritos por mulheres que vão contra a prática sexual. E ainda defende uma visão de que se algumas mulheres (que participaram do trote) aceitaram o ocorrido como brincadeira, outras mulheres não poderiam sentir-se ofendidas, caso contrário, a opinião daquelas seria inferior a dessas.

    O teor dessa decisão, promulgada por uma mulher, se relaciona com a visão que Bourdieu aplica no capítulo "A força do direito" pertencente ao livro: O poder simbólico, na qual o direito deve ser entendido como uma ferramenta de domínio da classe dominante, que carrega no seu alicerce a interpretação individual do operador. Ou seja, toda vez que essa ciência é aplicada, há uma parcela de julgamento individual, moldado por uma tradição jurídica que se perpetua no processo jurídico.

    Podemos comentar que o julgado em questão foi realizado por uma mulher, fato que pode apresentar a questão da hierarquia proposta por Bourdieu, nesse sentido, devemos compreender que a posição de uma mulher inserida na hierarquia do direito, que é sustentado por uma sociedade machista interfere na visão da magistrada, impedindo que ela defenda uma luta feminina em prol da manutenção do seu posto de atuação dentro do campo jurídico.

    É notório que os argumentos apresentados pela magistrada na decisão rodeiam uma argumentação de neutralidade, que pode ser vista em: "A verdadeira identidade do movimento feminista, portanto, é de engenharia social e subversão cultural e não de reconhecimento dos direitos civis femininos". Essa fala, pode demonstrar como a necessidade de garantir os interesses de uma classe dominante podem interferir na forma como a operadora do direito é obrigada a orientar o seu pensamento. Pois, sendo uma mulher, diminuir a luta feminista é uma característica do domínio patriarcal imposto pela tradição, fato que Bourdieu explica como base para o funcionamento do direito.

    Esse julgado, pode ser compreendido como uma divisão do trabalho, no qual a necessidade de manutenção de uma hierarquia tradicional é fundamentada pelo machismo que é reconhecido na forma de base social natural. Que pode ser percebido pelo fato de a atitude do requerido, foi identificada como condizente com a situação e transformada em brincadeira sem teor doloso e de acordo com as normas de convivência casuais.

    Por fim, é interessante ressaltar que muitas vezes, o domínio de uma ideia pessoal não é exclusivo de convicções pessoais, mas sim de uma moral necessária para a manutenção de uma posição de reconhecimento social. Ou seja, nem sempre as ideologias são próprias da pessoa individual, é nesse sentido que Bourdieu defende a ideia de que a tradição define comportamentos e demandas da ciência jurídica.

Álvaro Galhanone - Direito Noturno 1˚ ano.

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