segunda-feira, 18 de outubro de 2021

ANÁLISE DA ACP DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL ÀS MULHERES EM DISCURSO QUE FAZ APLOGIA AO ESTUPRO DURANTE O TROTE DE MEDICINA DA UNIFRAN EM 2019

 

Existe nas universidades brasileiras, a tradição de comemorar a entrada de novos estudantes com o chamado “trote”, que não é exatamente um momento de pura descontração entre calouros e veteranos, envolvendo muitas vezes “castigos” leves que são aplicados aos recém-chegados como uma forma distorcida, mas não necessariamente humilhante, de dar as boas-vindas. Mas no trote de medicina da Unifran (Universidade de Franca) de 2019, as coisas extrapolaram totalmente o que é aceitável, havendo, por parte dos veteranos, ofensas aos estudantes de outros cursos (aos quais eles referiram como “sub-cursos”) e de outras universidades. O mais chocante foi uma espécie de juramento que os novatos tiveram que fazer prometendo “usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiverem oportunidade”, e as novatas prometendo “nunca recusar uma tentativa de coito de veterano”.

O discurso feito foi repugnante, e estava repleto de falas machistas, misóginas, sexistas e pornográficas que estimulavam a violência sexual contra mulheres, o que fez com que fosse movida uma ação civil pública contra o discursante (seu nome não será mencionado). O pedido do Ministério Público era que o acusado pagasse uma indenização no valor de 40 salários mínimos por dano moral coletivo contra mulheres. Mas a ação foi julgada improcedente pela magistrada Dra. Adriana Gatto Martins Bonemer, que se se utilizou de argumentos conservadores, citando até mesmo falas e trechos de autoras feministas para atacar o movimento que ela dá a entender subversivo, para fundamentar sua decisão, mas que não eram mais que argumentos rasos, que não saiam do senso comum de uma sociedade machista.

O posicionamento da juíza diante do caso, bem como a forma que ela, uma mulher que provavelmente já sofreu algum tipo de violência por ter nascido como um indivíduo do sexo feminino, faz críticas e ataques contra o movimento feminista, é inesperado. No entanto, à luz dos estudos e teorias de Pierre Bourdieu, podemos fazer uma análise do julgado e da decisão fundamentada pela Dra. Adriana Bonemer.

Bourdieu trazia, em suas obras, conceitos muito realistas e perceptíveis na sociedade, como: campo, habitus, capital e poder simbólico. Todos podem ser identificados na sentença dada, bem como em qualquer seguimento da sociedade, no entanto, o habitus explica muito bem o porquê de uma mulher atuar de forma contrária à causa feminista e em favor do machismo, jugando improcedente uma manifestação clara de violência contra a mulher. E, como nenhum destes conceitos existem de forma independente, o capital também auxiliará a análise, e os demais estarão nela presentes.

Então, primeiramente, uma definição genérica e pouco aprofundada desses dois conceitos de Bourdieu: o habitus é o acúmulo de conhecimentos e crenças adquiridos pelos indivíduos dentro de uma classe ou campo, e que fica nele impregnado como parte de si (pode ser relacionado com o fato social de Durkheim); o capital, da forma que foi trabalhado por Pierre Bourdieu, supera a perspectiva econômica, sendo qualquer tipo de recurso do indivíduo, mesmo que sem valor monetário, podendo ser, além de capital econômico, capital social e capital cultural.

Estando inserida no campo jurídico, que é uma área majoritariamente ocupada por homens pertencentes a uma elite econômica e intelectual, e por isso muito machista e conservadora, a juíza Dra. Adriana Gatto Martins Bonemer, provavelmente teve que se adaptar a forma de pensar a sociedade que sua profissão exigia, o que é o habitus. Além disso, o que pode ter contribuído para a construção da Dra. Adriana como uma mulher machista (ou que ao menos parece ser por sua sentença no caso analisado) é aquilo que ela adquiriu de capital social e cultural enquanto alguém que estudou o direito e que vive com alguém de classe privilegiada. Seu conhecimento, ou capital cultural, é de uma pessoa de classe alta e de um meio conservador e é a essas pessoas que ela provavelmente favorecerá em suas decisões.

A juíza considerou improcedente a acusação por, segundo ela, o discurso não estar direcionado a todas as mulheres, mas a apenas um grupo que o aceitou como uma brincadeira adolescente e não se ofenderam. E adicionou que, mesmo que a fala do médico discursante estivesse direcionada a todas as mulheres, não deveriam ser as defensoras da causa feminista as que deveriam se ofender, já que, aparentemente, pelo pensamento da juíza a causa busca a libertinagem, e desvirtua a imagem das mulheres além do que o médico fez, como ela diz: “A verdadeira identidade do movimento feminista, portanto, é de engenharia social e subversão cultural e não de reconhecimento dos direitos civis femininos”. Para explicitar isso, ela se utiliza de obras feministas e outras que atacam o movimento, agindo dentro dos espaços do possível e justificando de forma a mostrar sua “cultura” de leitora.

Para que não fiquem dúvidas acerca do conteúdo machista e misógino do discurso realizado durante o trote, esta foi a parte gravada em vídeo por um dos estudantes e disponibilizada na ação:

"Eu prometo infernizar qualquer um dos bastardos, invejosos de sub-cursos como os da odonto e dos copiões de merda da FACEF, chupa FACEF, sem nunca dar razão a nenhum daqueles burros, filhos da puta, desgraçados de merda! E prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade, sem nunca ligar no dia seguinte" As bixetes: Eu prometo nunca entregar meu corpo a nenhum invejoso, burro, frouxa, filho da puta da Odonto ou da Facef. Repudio totalmente qualquer tentativa deles se aproveitarem e me reservo totalmente a vontade dos meus veteranos e prometo sempre atender aos seus desejos sexuais. Compreendo que namoro não combina com faculdade e a partir de hoje sou solteira, estou à disposição dos meus veteranos. Trecho de vídeo: inaudível... por suas reputações, mesmo que eles sejam desprovidos de beleza ou cheire a ovo vencido. Juro solenemente nunca recusar a uma tentativa de coito de veterano (inaudível...) mesmo que ele cheire cecê vencido e elas, a perfume barato."

 

Rodrigo Beloti de Morais

1º Ano - Noturno

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