sábado, 3 de julho de 2021

 ****O presente texto irá correlacionar alguns assuntos abordados em sala de aula ( textos referentes a pensamentos de Francis Bacon e René Descartes ) com o filme Ponto de Mutação, de Bernt Amadeus Capra. 




Descortinando as névoas do desconhecido!!




     Quantos de nós, em alguma fase da nossa vida, já não nos deparamos com momentos estranhos, em que não conseguimos enxergar os cenários que nos cercam com as riquezas de detalhes e contornos presentes em cada um deles? Quantos de nós, por uma infinidade de motivos, já não tomamos como certo aquilo que é errado e como errado aquilo que seria o certo?


     Francis Bacon e René Descartes, e alguns outros pensadores anteriores a eles, dedicaram parte de suas existências na tentativa de criar um método que fosse capaz de evitar que a humanidade incorresse em situações como as duas perguntas formuladas no parágrafo acima. Ambos almejavam que as pessoas fossem capazes de vislumbrar as riquezas de detalhes e contornos dos objetos em sua plenitude. Ambos sonhavam com a possibilidade de que as pessoas não mais confundissem o certo com o errado, e vice-versa! É com esse escopo que se fortalece a ideia da criação de um Método Científico que fosse eficiente o bastante para o real entendimento do mundo que nos cerca. Porém, antes de falar sobre o Método Científico em si, é interessante pontuar o contexto no qual ele estava inserido. 


     O período classificado como Idade Média europeia compreende o arco de tempo que vai da derrocada do Império Romano do ocidente ( século V ) até a tomada de Constantinopla pelo Império Turco Otomano ( século XV ). De maneira genérica, o modo de produção era do tipo feudal, no qual formava-se uma teia de ligações entre senhores feudais, vassalos e servos. Pairando sobre todos estava a Igreja Católica, a Senhora Feudal por excelência,  detentora do maior poder religioso, político, econômico, cultural, científico e militar da época. Quase sem exceção, os comportamentos e relações entre indivíduos e entre estes e as instituições eram tutelados pela igreja. A explicação para praticamente todos os fenômenos naturais e sociais se baseavam em dogmas religiosos. Desde coisas simples, práticas, com aplicação no dia a dia das pessoas, até pensamentos mais elaborados e de cunho pré-científicos, enfim, tudo estava atrelado ao mundo religioso e sobrenatural monopolizado pela igreja. Opor-se a essa realidade era uma atitude perigosa. Muitos que se opuseram, inclusive, foram excluídos do seu meio, foram ridicularizados ou até mesmo mortos. Ainda assim, mesmo com todo o risco envolvido, uma onda de contestação começa a ganhar força, materializando o que ficaria conhecido como Renascimento, um resgate e posterior aperfeiçoamento do conhecimento produzido na antiguidade clássica, mais precisamente a antiguidade greco-romana. 


     Antigos estudos filosóficos são retomados, grandes tratados de medicina, anatomia e ciências naturais são elaborados, o comércio e a vida urbana ganham intensidade ao ocuparem as novas rotas comerciais, surgem as corporações de ofício, atividades bancárias florescem ofertando créditos e tantos outros agentes surgem em cena. Se outrora o pensamento oficial eclesiástico era repassado lentamente por obra dos monges copistas, com o advento da Imprensa de Gutenberg o pensamento não oficial passa a circular de maneira mais rápida e mais abrangente. Conceitos como teocentrismo e geocentrismo começam a ser abalados e surgem em números cada vez maiores defensores do humanismo, do antropocentrismo e do heliocentrismo. A igreja passa a ser questionada até mesmo internamente, culminando com o movimento da Reforma Protestante. Contudo, mesmo diante de toda essa nova realidade, é impossível afirmar que a Igreja Católica deixou de ser a instituição mais forte da idade média. Certo é que o Renascimento ladrilhou um caminho através do qual as pessoas daquele tempo percorreriam rumo a um mundo que nunca mais seria o mesmo. 


     Bacon e Descartes são frutos desse período. Ambos preconizavam a necessidade da ciência estar a serviço do ser humano, ou seja, ela deveria ser um instrumento de cunho prático e o seu fim maior seria proporcionar o bem estar geral da humanidade. Cada qual a sua maneira, procuraram lançar as bases de um pensamento mais estruturado e formal, que desse conta de interpretar e conhecer o funcionamento dos fenômenos naturais, possibilitando uma intervenção e até mesmo uma alteração na natureza em benefício próprio. O Método Científico ideal deveria sobrepor-se ao senso comum e não deveria valer-se de explicações religiosas. 


     Sem entrar nos pormenores a respeito do método adotado por cada um, vale ressaltar algumas diferenças entre eles. Francis Bacon guiava-se pelo método indutivo, ou seja, partia da análise individual de um determinado fato e dependendo das respostas obtidas, ele formulava uma lei geral. Por basear-se nos sentidos, ele ficou conhecido como empirista, pensamento que se baseia nos sentidos e nas experiências vividas para fazer uma leitura mais acurada do mundo. Renè Descartes, por outro lado, utilizava o método dedutivo para interpretar o mundo que o cercava. Ele partia de uma lei geral, ampla, e a pormenorizava. Não negava a importância do uso dos sentidos e das experiências, contudo dizia que o verdadeiro conhecimento só brotaria com o uso da razão pura, preferencialmente expressa em conceitos matemáticos. 


     Naquele contexto específico, munidos do conhecimento que dispunham na época, ambos ousaram romper com uma série de paradigmas vigentes. De maneira mais ou menos intensa, abalaram convicções e escancararam a limitação do pensamento baseado no senso comum. Foram admirados por alguns, questionados por outros tantos e certamente ganharam muitos desafetos. 


     Daquela época até os dias atuais, muita coisa mudou com relação a estrutura e a aplicação do Método Científico. A ciência de fato altera, interfere e muitas vezes transforma a natureza a seu bel prazer. É inegável que em muitos aspectos a vida humana melhorou consideravelmente, porém será que os resultados da atividade científica são distribuídos de maneira equilibrada ao redor do globo? Seria o método científico infalível na obtenção de respostas para as perguntas que os fenômenos naturais ensejam? Quais os reais interesses da ciência? Quem detém o poder e o direito de ditar os rumos de uma pesquisa científica em escala global? Até que ponto o planeta aguentaria ser explorado e depredado pelas atividades humanas decorrentes da tecnologia aplicada? Até onde vai nossa ânsia por recursos naturais?

     Questionamentos como esses e tantos outros são levantados ao longo do filme O Ponto de Mutação. Na obra cinematográfica de Bernt Amadeus Capra, três personagens de origens distintas se reúnem quase de maneira fortuita e trocam opiniões relacionadas a vários assuntos, dentre os quais política, ciência, artes, desenvolvimento tecnológico, economia, etc. Com suas experiências de vida, suas profissões, anseios e desilusões, cada um deles traz suas imagens particulares do mundo, ideias pré-concebidas da realidade.


     Na leitura que faço ao assistir o vídeo, percebo que em muitos momentos ele dialoga com o que foi abordado em sala de aula. O atual estágio de desenvolvimento da sociedade, fruto também da evolução tecnológica proporcionada pela ciência, talvez estaria exigindo dos indivíduos e dos relacionamentos um alto grau de mecanicismo. Utiliza-se cada vez mais recursos naturais para a manufatura de produtos e serviços que serão vorazmente utilizados por uma população cada vez mais ávida e imersa no consumismo. A produção de lixo aumenta em escala global, contaminando terras agricultáveis, rios, lençóis freáticos, oceanos, etc. Em muitas situações, comunidades inteiras são prejudicadas por conta de interesses particulares, países são invadidos, fronteiras são traçadas arbitrariamente entre povos, modos de produção artesanais e milenares dão lugar a massificação industrial. Há ponderações muito pertinentes sobre o uso da ciência com fins bélicos, meramente geopolíticos. O diálogo com Bacon e Descartes torna-se ainda mais forte ao trazer a dúvida se realmente o pensamento científico ( ciência ) estaria sendo usado em prol da sociedade, desejo manifesto de ambos. 


     Outro ponto importante abordado no filme é a apresentação da Teoria Geral dos Sistemas. Nesta concepção de conhecimento, todos os seres vivos estariam conectados e fariam parte de um todo maior, um organismo ecossistêmico. As partes que formam o todo se interrelacionam e modificam um ao outro. A essência estaria nas conexões, nas relações, na sinergia entre as partes orgânicas e não orgânicas que estruturam o ecossistema. Enquanto o racionalismo desenfreado do mundo moderno decompõe a natureza para compreendê-la, a visão ecossistêmica aborda a questão de maneira holística, buscando sempre a homeostase, o equilíbrio do todo. 


     Retornando à época de Bacon e Descartes, é fácil perceber que os dois tentaram mudar a perspectiva que tinham da realidade. Tanto é verdade que seus nomes constam como personalidades que participaram do que viria a ficar conhecida como Revolução Científica. Para o bem e para o mal, o resultado dessa Revolução perdura até hoje. Contudo, não seria esse o momento ideal da nossa geração fazer uma mudança de perspectiva? Vivemos em um mundo doente, com excesso de consumo, intolerante, desigual, individualista, frenético, injusto. Até que ponto aguentaremos ser uma humanidade desumana? Creio sinceramente que uma mudança de perspectiva seria um bom ponto de partida para corrigirmos o que está errado. 


     Interessante notar que no início da interação entre os personagens do filme cada um demonstrava ter certeza de suas opiniões, defendendo-as de maneira intransigente. À medida que a conversa avança, porém, surgem incertezas, dúvidas, velhas visões de mundo são abaladas por pensamentos diferentes, por interesses antagônicos. Aquele que era uma ilha, transforma-se em um arquipélago na medida em que passa a absorver o conhecimento do outro, e de outro, e de tantos outros que virão. Essa troca é de uma riqueza ímpar. Essa conexão de pensamentos, essa fusão de ideias são o substrato do real entendimento do mundo. Sozinho eu me limito, com os outros eu me liberto.


     Para finalizar, gostaria de mencionar dois trechos do filme que me marcaram muito e foram responsáveis pelo título desse trabalho. São dois momentos antagônicos, porém interrelacionados. 


     Na chegada à ilha, o filme mostra o ambiente envolto em muita névoa e muita neblina, impossibilitando o reconhecimento dos detalhes do local, suas formas, texturas, etc. Ficam apenas sugestões. É o conhecimento aparente, superficial, o senso comum. É o conhecimento individual, aprisionado e limitado.


     Na partida de cada um deles, na parte final, a câmera focaliza justamente o que inicialmente estava envolto em névoas. Agora, porém, a cena descortina-se por inteiro: não há mais névoas, não há mais neblina. É possível observar a ilha medieval por inteira, suas cores, seus contornos, a textura dos tijolos, fauna e flora que a cercam, suas escadarias, o movimento de pessoas, o badalar dos sinos das igrejas, etc. É a mais pura metáfora para a transformação pela qual os personagens passaram após a longa discussão, a troca de ideias, o compartilhamento de conhecimento e experiências. Já não carregam certezas absolutas e já não se consideram paladinos da verdade. Compreenderam que cada indivíduo tem uma visão relativa e somente com a pluralidade de pensamento chegarão ao real entendimento do mundo.   


     É o conhecimento, sob uma nova perspectiva de vida, descortinando as névoas do desconhecido... 


    



Andre’ Michielli ( 1° ano - Direito/Noturno )


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