domingo, 23 de agosto de 2020

Impessoal, alienante e falacioso: o atual sistema

 

No livro A corrosão do caráter, o escritor Sennett, no primeiro capítulo, conta a história de Rico, um homem bem sucedido, filho de um faxineiro imigrante italiano.
Rico, assim como muitos jovens da sua classe em seu tempo, alcançou a ascensão social, saindo de uma simples família operária e se tornando um empreendedor.
Porém, nessa história, não foi somente Rico que mudou, mas todo o mundo: o modo de produção agora era outro.
Na época em que Eurico, pai de Rico, era faxineiro, o modo de produção estabelecido era o fordista, linear e acumulativo, com a presença de fortes sindicatos e legislação trabalhista e previdenciária.
Porém, quando vamos analisar a vida de Rico, ela é totalmente influenciada pelo modo de produção vigente, o Toyotismo. Neste caso, o que vigora não é mais a produção linear, como no fordismo, mas o trabalho difuso, a terceirização, a empresa flexível, enfim, a flexibilização extrema do trabalho.

Assim como na vida de Rico, a população global quase que em sua totalidade vive sob influência das condições materiais estabelecidas, lidando com o risco constante de mudança e com os frequentes ataques e retiradas de direitos pelo governo, em nome do Neoliberalismo e de uma lógica de “Menos direito e emprego OU todos os direitos e desemprego”, como disse o nosso presidente Bolsonaro.

O desemprego no Brasil já é uma realidade. No ano passado, já eram 11 milhões de desempregados no país. Hoje, em meio a pandemia de Corona vírus, a situação é ainda pior, haja vista o fechamento de mais de 8 milhões de postos de trabalho entre abril e junho.

Mesmo em meio a calamidade, o Governo Federal não se conteve em atacar o funcionalismo público. Os ataques direcionados se tornaram pauta da Capital e têm se intensificado desde fevereiro, quando o ministro da economia, Paulo Guedes, comparou funcionários públicos a parasitas: “O hospedeiro está morrendo, o cara virou um parasita, o dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático”. Defendendo a reforma administrativa, ainda disse que os servidores já têm “privilégios” como a estabilidade e a aposentadoria. Ora, é visível a corrosão da proteção do trabalhador brasileiro. O que antes foi defendido pelos sindicatos e conquistado com a CLT, os direitos trabalhistas e sociais, hoje é visto como mero privilégio, ou seja, não pertence a todos e aqueles que o possuem, não o deveriam, pois, incitam a desigualdade. É uma falácia.

Além da deterioração de direitos e da instabilidade no trabalho, os indivíduos têm de lidar com as consequências que um modo de produção tão difuso e incerto pode ter em suas vidas: tem de estar preparado para qualquer acontecimento que seja, desde reajuste salarial até uma pandemia. Uma exigência extrema de capacitação do trabalhador que leva a altos níveis de estresse e ansiedade com relação ao medo constante do fracasso. A música Oh No!, da cantora Marina, exemplifica muito bem esse sentimento, quando diz: Uma cabeça focada, um coração obcecado/ Se eu falhar, vou desmoronar/ Talvez tudo isso seja um teste/ Porque eu sinto que sou a pior/ Então eu sempre ajo como se fosse a melhor.

Lendo o livro de Sennett, é possível imaginar quais os fatores que levam a “corrosão do caráter”. O problema não está simplesmente na forma de produção vigente, que, como diz Marx no livro A Ideologia Alemã “o que os indivíduos são depende, por tanto, das condições materiais de sua produção”, mas também no antagonismo existente entre a moral e costumes ensinados largamente pelas gerações passadas e o atual modo de produção. Porém, este não é o único e está longe de ser o problema central, que estaria no capitalismo e o seu atual estágio: extremamente impessoal e super alienante, que trata o fator humano como meras peças substituíveis de uma máquina agressiva.

Angela Severo dos Santos – matutino

Referências:

Araújo, Carla; Murakawa, Fábio. Bolsonaro: Trabalhador terá de escolher entre mais direitos ou emprego. Valor Econômico, Brasília, 4 abr. 2018, 19:17. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2018/12/04/bolsonaro-trabalhador-tera-de-escolher-entre-mais-direitos-ou-emprego.ghtml. Acesso em 22 ago. 2020, 20:54.

 

Silveira, Daniel. Paulo Guedes compara funcionário público a 'parasita' ao defender reforma administrativa. G1, Rio de Janeiro, 07 fev. 2020, 14:25. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/02/07/paulo-guedes-compara-funcionario-publico-a-parasita-ao-defender-reforma-administrativa.ghtml. Acesso em 22 ago. 2020, 20:54.

 

Alvarenga, Darlan. Desemprego sobe para 13,3% em junho e país tem nova queda recorde no número de ocupados. G1, 6 ago. 2020, 09:02. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/06/desemprego-sobe-para-133percent-em-junho-diz-ibge.ghtml. Acesso em: 22 ago. 2020, 20:54.

 

OH NO!. [compositora e intérprete]: Marina Diamandis. Reino Unido: The Family Jewels, 2010.

 

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