terça-feira, 4 de agosto de 2020

A imprecisão do direito brasileiro em professar a organicidade durkheimiana

Postulada pelo sociólogo francês Émile Durkheim no final do século XIX, com base em sua conceituação referente aos fatos sociais de uma sociedade, a solidariedade, isto é, a maneira como os indivíduos de determinado corpo social interagem entre si, é tipificada em mecânica ou orgânica. Na solidariedade mecânica, presente em sociedades pré-modernas de caráter rudimentar, os sujeitos relacionam-se a partir de crenças comuns. Consequentemente, a essência criminal dos ilícitos nessa categoria de coexistência  consiste na ofensa à consciência coletiva, a qual é penalizada por um direito punitivo, em que a sanção é desproporcional ao mal causado. Enquanto isso, na solidariedade orgânica, vigente em sociedades modernas de caráter complexo, em que o capitalismo aparece de modo avançado, os sujeitos relacionam-se a partir da complementaridade das funções, advinda da divisão do trabalho, o que gera a dependência de um ao outro. Por consequência disso, a essência criminal dos ilícitos nessa modalidade de coabitação consiste na ofensa à sua organicidade, a qual é penalizada por um direito restitutivo, em que a sanção, além de ser proporcional ao mal causado, também visa a restituição do praticante do crime ao corpo social. Entretanto, apesar de já ter passado pelo processo modernizador capitalista no século XX, instaurado a partir da década de 30 por Getúlio Vargas, o Brasil é um país que não professa, integralmente, em seu sistema jurídico, o direito restitutivo, apontado pela doutrina durkheimiana, de uma solidariedade orgânica.
Primeiramente, constata-se que, mesmo sendo fruto de uma sociedade moderna, o direito brasileiro apresenta uma cultura punitiva em seu cerne. A título de exemplo, de acordo com a juíza aposentada do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), Telma de Verçosa Roessing, a legislação penal sobre entorpecentes no Brasil apresenta-se de maneira imprecisa, sem definir os parâmetros necessários para distinguir os diferentes graus da participação de um indivíduo no tráfico, o que possibilita, assim, a proferição de penas desproporcionais — no pensamento de Durkheim, peculiaridade de uma sociedade pré-moderna, regida pela solidariedade mecânica —  aos pequenos traficantes por parte dos magistrados:

Realmente não há como comparar a mulher que é flagrada levando drogas para o marido na prisão com uma pessoa que fica vendendo grande quantidade de drogas nas chamadas bocas de fumo. Ocorre que os tipos penais previstos na Lei de Drogas são genéricos e não fazem diferença em relação à posição ocupada pelo agente na rede do tráfico, não havendo proporcionalidade das penas. O juiz fica sem critérios objetivos para nortear sua decisão. (ROESSING, 2013, apud VASCONCELLOS, 2013).
À vista disso, é amplamente notório a adversidade da superlotação carcerária no sistema prisional brasileiro. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, 32,92% dos presos estão detidos por crimes relacionados às drogas, sendo a maioria percentual da população carcerária  no Brasil. Ademais, conforme um levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018, 85% da população carcerária brasileira não possui sequer o ensino médio completo. Em consequência disso, ao cumprirem sua respectiva pena, antigos presidiários, tendo em vista a falta de empregabilidade decorrente da escassez de uma formação adequada oferecida pelo poder público, podem voltar à criminalidade,  o que evidencia que, diferente do direito restitutivo de uma sociedade moderna preconizada por Durkheim, em muitos casos, o do Brasil tende apenas a punir infratores, não havendo, portanto, nenhum tipo de processo de ressocialização ao convívio social, característica da organicidade durkheimiana.
Com isso, diante do que foi exposto, conclui-se que, por mais que o Brasil seja uma sociedade moderna, em que a divisão do trabalho aparece de maneira bem definida, seu direito não é totalmente restitutivo, indo na contramão da tese elaborada por Émile Durkheim. Tal condição pode ser explicada pelo fato do processo modernizador capitalista ter ocorrido de maneira tardia em âmbito brasileiro, mais especificamente, apenas a partir da década de 30 do século XX, o que resultou no chamado “capitalismo periférico”, o qual ainda apresenta diversas características de uma sociedade pré-moderna. Por outro lado, países do chamado “capitalismo central”, o qual experimentaram um processo modernizador capitalista mais precocemente, como a Holanda, que participou da Segunda Revolução Industrial no século XIX, possuem o pleno direito restitutivo, expressado pela desativação de presídios nesse país nos últimos anos.

Luís Arquimedes Takizawa Albano - Direito Noturno

Referências bibliográficas:

MENDES, Gilmar. Educação e ressocialização: Estímulo ao estudo é política de segurança pública. Folha de São Paulo, São Paulo, jun. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/06/educacao-e-ressocializacao.shtml. Acesso em: 4 ago. 2020.

NASCIMENTO, Luciano. Brasil tem mais de 773 mil encarcerados, maioria no regime fechado: Presos provisórios são o segundo maior contingente. Agência Brasil, Brasília - DF, fev. 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/brasil-tem-mais-de-773-mil-encarcerados-maioria-no-regime-fechado. Acesso em: 4 ago. 2020.

VASCONCELLOS, Jorge. Lei sobre drogas deve mudar para evitar penas desproporcionais à mulher, defende juíza. Agência CNJ de Notícias, [s. l.], jul. 2013. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/lei-sobre-drogas-deve-mudar-para-evitar-penas-desproporcionais-a-mulher-defende-juiza/. Acesso em: 4 ago. 2020.

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