sábado, 25 de julho de 2020

Palavra de Direito

Palavra de Direito 

Por Marina Colafemea (1° ano do Direito – Noturno) 

Caragutatuba, SP 
2020 

PERSONAGENS  
Pastor 
Francisco  
Hélio  
Henrique  

ÉPOCA: ano de 2019; LUGAR DO DRAMA: São Paulo, Brasil 

PRIMEIRO ATO 
[Culto evangélico. É noite. O pastor se posiciona ao meio do palco, sozinhoA iluminação centraliza-se nele. Há uma bíblia sobre uma mão, enquanto a outra está levantada, apontando para o céu. Atrás da personagem, uma cruz] 

CENA I 
PASTOR (com a voz bem alta): Essa é a palavra de Deus! Levítico 18:22, “Não se deite com outro homem para ter relações com ele como se fosse mulher; é abominação” (passando a gritar e a andar pelo palco a partir da última palavra). O homossexualismo é demoníaco! No capítulo 20 do mesmo livro, capítulo 13, a palavra do Senhor afirma: eles serão mortos! O seu sangue cairá sobre eles! (As luzes se apagam) 

SEGUNDO ATO 
[Estão na sala de Hélio. Há uma mesa com cadernos, livros e um notebook, Hélio está sentado em frente a ela em sua cadeira de escritório. Está vestido de terno e gravataFrancisco está mais distante, varrendo a sala e recolhendo a sujeira com a pá, de modo delicado. Suas roupas são visivelmente antigas e simples] 

CENA I 
HÉLIO (tirando os olhos do notebook e pousando-os em Francisco): Então garoto... Qual é seu nome mesmo? (com cara de pensativo e um tanto debochado) 
FRANCISCO: É Francisco, Dr. Hélio. (com seu sotaque cearense e voz mais afeminada) 
HÉLIO (com a feição ainda mais debochada, abrindo um sorriso amarelo): Ah, sim... Chicão. Então, saiu do Nordeste, por que, hein? Não estava achando namorada? (dando risada). 
FRANCISCO (visivelmente sem graça): Apuiarés, no Ceará, estava pequena demais pros meus sonhos, doutor. Aí eu vim pra São Paulo, pra correr atrás. Arrumei esse emprego aqui há quase um ano e estudo à noite. 
HÉLIO (um tanto surpreso): Um ano? Nunca reparei em você aqui... E que sonhos espaçosos são esses? Não tinha curso técnico no Ceará, não? 
FRANCISCO: Tem curso técnico lá, sim, doutor. Mas não é isso que eu faço, não. Eu faço cursinho popular à noite. É que eu queria era fazer faculdade na USP... Um dia eu vou ser formado igualzinho o senhor, no mesmo curso, até já prestei o vestibular... 
HÉLIO (chocado e dando risada): Você quer fazer Direito na USP, meu filho? Pra que isso? Lá é muito difícil, viu? Não é porque você tem vantagem por ser pobre, com esse tanto de cota sem sentido, que fica fácil, não. Mais fácil você fazer um curso técnico em Serviços Jurídicos ali na ETEC mesmo. 
FRANCISCO (sonhador): É que eu quero ir pra Academia, pesquisar, ajudar aquilo que eu acredito. Imagina, um dia eu posso ser juiz! Ou até ir pra política! Bom demais, doutor...Eu não quero ficar limpando o chão a vida toda... 
HÉLIO (irritado): E o que tem de errado em limpar chão?! Está insatisfeito?! Pode sair da minha sala!  
FRANCISCO (assustado): Não é isso, não, doutor, é que... 
HÉLIO (gesticulando com os bravos, nervoso): Sai, sai, sai... 

[Francisco pega a vassoura e a pá e sai do espaço com a cabeça baixa] 

CENA II 
[Após a saída de Francisco, alguém bate na porta. Henrique entra vestindo polo branca, bermuda caqui e sapatênis. O cenário é o mesmo] 
HÉLIO (estressado): Entra!  
HENRIQUE: Oi, pai! Como você está? 
HÉLIO: Irritado! Esse povo pobre cospe no prato que come! Deveriam agradecer por ter dinheiro para comer, mas só reclamam! Precisam do que mais? E além de tudo, onde já se viu nordestino viado querer ser juiz? (começa a dar risadaDesde quando existe juiz viado?! Imagina a desordem que esse país vai virar! Isso aqui vai ser uma putaria!  
HENRIQUE (confuso, mas dando risada): Do que você está falando? 
HÉLIO (gargalhando): Sabe aquela bichona que acabou de sair daqui? É seu concorrente no vestibular. (Sorri maliciosamente para o filho) Cuidado, hein? Vai querer pesquisar com você! 
HENRIQUE (dando risada): Sai fora! Mas coitado... Deveria se contentar com a realidade dele, aceitar suas funções...Vai acabar dando com a cara no chão. Infelizmente, esse povo mais pobre não tem muita noção das coisas, não percebem que têm locais que não vão da conta de acessar... Quando entram, entram por cota, mas, depois, não aguentam a Universidade e saem! Só pensam em privilégios! Se eu quiser entrar, não tenho ajuda nenhuma no vestibular!  
HÉLIO (acenando positivamente com a cabeça): Exatamente, meu filho. Cada qual como sua função na sociedade. Mas não podemos dizer isso a ninguém, senão somos preconceituosos! Não há nem mais liberdade de expressão! 
HENRIQUE: Mas para esse degenerado querer pesquisar sobre dar o rabo na Universidade, há! É um absurdo... Só pensam nessa ideologia de gênero, esquecem-se que se isso fosse certo, conseguiriam reproduzir. A própria biologia demonstra que isso é insanidade, pouca vergonha!  
HÉLIOE ainda querem direitos especiais? Não queriam ser considerados normais?! Mas não vamos mais nos estressar com isso, sabemos que essa baitola não tem capacidade de passar em porcaria nenhuma. Afinal, por que você veio aqui? 
HENRIQUE: Ah, sim! Queria pedir uma graninha pra sair com uma menina que eu estou ficando... 
HÉLIO (sorrindo): Aí, sim, garoto! Trezentos, dá? 
HENRIQUE: Ah, acho que dá pro gasto. 
[O pai abre a carteira e entrega três notas de cem reais para o filho, que sai da sala] 

TERCEIRO ATO 
[Semanas se passam. Agora o cenário é a rua. Há um semáforo do lado esquerdo do palco e duas árvores no direito. Henrique e Francisco entram juntos, mas por lados distintos. Henrique de cabeça baixa e Francisco todo pintado e sorridente. Passam um pelo outro] 

CENA I 
HENRIQUE (olhando para trás, para Francisco): Ei, ei!  
FRANCISCO (olhando para trás, de volta): Oi? 
HENRIQUE: Você é o faxineiro da empresa onde meu pai trabalha, não é? 
FRANCISCO: Ah, é! Você é filho do doutor Hélio. Trabalhava lá, sim. 
HENRIQUE (indo para cima de Francisco): Trabalhava? Deixou o emprego pra virar drag queen? Tá todo pintado por que? 
FRANCISCO (indo para trás): Eu saí porque passei na faculdade. Vou estudar Direito. Na USP.  
HENRIQUE: Entrou com cota de viado? 
FRANCISCO: O que? Meu amigo, me deixa em paz (começa a dar as costas). 
HENRIQUE (puxando Francisco pelo ombro): Essa palhaçada do seu mimimi de privilégio me tirou da faculdade, seu viado. Onde já se viu eu perder vaga pra viado nordestino? 
FRANCISCO: Meu privilégio?  
[Henrique dá um soco no rosto de Francisco, que cai no chão] 
HENRIQUE: Eu não vou ter juiz viado! Virou palhaçada isso aqui?! 
[Francisco tenta ir para trás, ainda no chão, mas Henrique o chuta na barriga três vezes] 
HENRIQUE: O seu lugar nunca vai ser esse!  
[Henrique o chuta no rosto] 
HENRIQUE: Você é uma abominação! 
[Henrique pega Francisco pelo cabelo e bate a cabeça desse contra o asfalto. Henrique levanta e observa. Francisco está morto, com seu sangue caindo sobre si mesmo. Henrique sai de cena] 


Nota da autora: 

Esse texto foi desenvolvido para cumprir uma proposta pedagógica, não representando, de forma alguma, a visão daquela que o escreveu. Termos esdrúxulos e incorretos (como “homossexualismo”) foram utilizados para aproximar a peça da visão conservadora 

Xenofobia e lgbtfobia são crimes.  

A seguir, inciativas auxiliadoras no combate à violência contra a comunidade LGBTQIA+ e nordestina:

Portal da Safernet: para denunciar homofobia e xenofobia em páginas da internet ou em redes sociais.

Aplicativo TODXS: por ele, é possível denunciar casos de homofobia e transfobia, além de avaliar o atendimento policial. Possui informações sobre o mapa da LGBTfobia e permite consultar organizações de proteção e de leis que defendem a comunidade LGBT

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