sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O papel dos tribunais na mobilização e contramobilização do direito

    Finalmente bem analisada e discutida a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26) movida anos atrás pelo Partido Popular Socialista (PPS), atual Cidadania, através da liderança da legenda Roberto João Pereira Freire (deputado federal por São Paulo), o Supremo Tribunal Federal (STF), em 13 de junho de 2019, por 8 votos a 3, deu provimento a esta, a qual exigia a criminalização da LGBTfobia e as violências relacionadas (como ofensas e agressões). Assim, a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passa a configurar como crime, porém sendo enquadrada na Lei Nº 7716/89 (também conhecida como Lei de Racismo), que já definia os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor.
    O então PPS endossou em seu argumento na ADO 26 a necessidade do cumprimento efetivo dos direitos previstos na Constituição Federal, especialmente no que se refere ao artigo terceiro, inciso IV ("promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação"), e ao artigo quinto, inciso XLI ("a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais"), alegando também uma suposta "má vontade institucional do Parlamento Brasileiro". A pauta da criminalização é uma das mais antigas dos grupos LGBT+ no Brasil, e, logo, a não tratativa do assunto pelo Poder Legislativo demonstraria uma atitude inconstitucional por se omitir a, ao menos, discutir possibilidades de concretização de direitos, os quais já são uma tendência a nível mundial (a criminalização e a subsequente proteção de direitos são visualizadas em normas de mais de quarenta países).
    A acepção de direitos legítimos, aliás, é uma das grandes abordagens realizadas pelo jurista e professor norte-americano Michael W. McCann, definindo o papel dos tribunais na questão da mobilização do direito. O crescente protagonismo das autoridades judiciais neste processo se deve à principal dimensão da influência dos tribunais na perspectiva de mobilização do direito, que é o nível de seu poder constitutivo, através do qual lhe é permitida a interpretação à luz da Constituição para que seja possibilitada a garantia dos direitos exigidos, havendo, por exemplo, um rompimento com a inércia legislativa. Ademais, nota-se que a judicialização possa a ser apresentada como uma solução pontual de problemas, relembrando que o STF, o dito "Guardião da Constituição", por exemplo, já dera prosseguimento a temas de relevância no cenário brasileiro e que estavam deixados de lado pelo Congresso Nacional, como ocorrera com o aborto de fetos anencéfalos, as pesquisas com células-tronco e a união homoafetiva, criando, assim, precedentes de origem legal que possam incidir em "fichas de negociação", essenciais para que haja a reinvidicação por parte de grupos com determinado interesse.
       Todavia, é importante também destacar alguns pontos quanto a este cenário. Primeiramente, mesmo munido de aparatos e certa legitimidade e legalidade para agir, o Poder Judiciário deve manter-se em posição de harmonia com os demais poderes, procurando não se a acostumar a tomar decisões cabíveis aos genuínos legisladores a todo instante (estes são os representantes eleitos do povo e devem ser cobrados para tomar ações para cumprir seu papel). Em segundo lugar, especificamente nesta decisão, o enquadramento do crime de LGBTfobia na Lei de Racismo, que se refere a questões discriminatórias de raça e de cor, pode criar confusões na análise de casos; o Congresso poderia desenvolver, então, uma legislação especial para tais situações, mas correndo o risco de razoável divergência com o que fora decidido no STF, resultando em um afrouxamento das regras por sua parte ou pela parte do órgão de justiça citado (ou mesmo em instâncias inferiores) quando a nova lei for utilizada e possivelmente contestada, gerando, assim, no meio deste possível desentendimento, uma contramobilização do direito, ou seja, uma força oposta aos dos direitos que deveriam ser contemplados.
           Portanto, em uma sociedade democrática, é de suma importância haver a concretização de direitos através de, por exemplo, leis que protejam à dignidade humana de seus cidadãos, em todos os âmbito. Os tribunais possuem papel fundamental neste processo, sempre produzindo precedentes para que direitos possam ser reivindicados e futuramente dispostos na forma legal, porém sempre atentos de que não possam se valer de seu poder para se sobressair ao Poder Legislativo, incumbindo-se de suas funções indiscriminadamente ou indo contrariamente às decisões tomadas de maneira desproporcional e tornando-se a própria contramobilização do direito.

Eduardo Cortinove Simões Pinto
1º ano - Direito Matutino  
         

O PAPEL DOS TRIBUNAIS NA CONCRETIZAÇÃO DOS INTERESSES DAS MINORIAS: breves reflexões sobre a ADO 26 à luz das concepções da mobilização do direito pelos usuários


Na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS), o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou mais detidamente os mandamentos constitucionais de punição em razão de discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI, CF) e da prática de racismo em virtude da orientação sexual ou da identidade de gênero da pessoa (art. 5º, XLII, CF). Em junho de 2019, a maioria dos ministros julgou a ação procedente, com repercussão geral e efeito vinculante.

A decisão pela procedência da ADO implicou consequências importantes para o tratamento da questão. Em primeiro lugar, em virtude do próprio caráter da ADO como instrumento de concretização de direitos fundamentais, o Poder Legislativo pátrio foi notificado sobre a injustificável mora inconstitucional referente a falta de edição de norma ordinária que regulamente as determinações constitucionais do art. 5º, incisos XLI e XLII, para a proteção do grupo LGBTI+. Em segundo lugar, o STF enquadrou, pelo princípio da interpretação conforme, as práticas de homofobia e transfobia no conceito de racismo previsto na Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, até que o Congresso Nacional edite norma que implemente as determinações constitucionais supracitadas.

Embora a prática do crime de racismo para a grande parte da população esteja mais relacionada a questões biológicas e fenotípicas, o STF empregou a concepção de racismo social para justificar a criminalização de práticas homofóbicas e transfóbicas como racismo. Segundo o acórdão, o racismo social


projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito. (STF, 2019)


Como o pleito da comunidade LGBTI+ suscitou acirradas divergências de grupos sociais conservadores, a decisão em tela também estabeleceu a ponderação para compatibilizar a repressão penal à homotransfobia e o exercício do direito à liberdade religiosa. Desse modo, assegurou-se aos ministros e fiéis de qualquer denominação confessional o direito pregar, divulgar, ensinar sua orientação doutrinária, desde que não incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, atos que configurariam discurso de ódio.

A paradigmática decisão do STF sobre a questão da homofobia enquadra-se no contexto da ascendência do poder dos Tribunais Constitucionais e Tribunais Superiores observada, em diversos países do mundo, a partir da segunda metade do século XX. Verifica-se que o aumento do protagonismo do Poder Judiciário, que tem atuado de forma contramajoritária para decidir temas sociais sensíveis, suscita posicionamentos antagônicos tanto entre os cidadãos quanto entre os próprios operadores do direito. Esse processo de empoderamento dos tribunais também não tem passado despercebido ao meio acadêmico, que, progressivamente, tem avançado nas pesquisas sobre o tema.

Dentre as publicações acadêmicas sobre o tema, destaca-se o artigo “Poder Judiciário e mobilização do Direito: uma perspectiva dos ´usuários´”, elaborado pelo cientista político, Michael W. McCann, da Universidade de Washington, que analisa o tema a partir de um novo olhar: o dos usuários. No respectivo artigo, ao constatar a ampliação da atuação do Poder Judiciário em temas como “o tratamento das minorias raciais, étnicas e sexuais; os limites da liberdade religiosa e da reprodução humana; os crimes contra os direitos humanos; o sentido dos direitos sociais; a punição da corrupção política; e a responsabilidade do Poder Executivo em matérias de segurança pública” (McCANN, 2010, p. 175), o autor procura compreender as causas do fortalecimento político dos tribunais e quais as suas respectivas implicações.    

Nesse breve ensaio traça-se algumas breves reflexões sobre a referida obra de McCann e a ADO 26. Em primeiro lugar, percebe-se que a proposição de McCann sobre “mobilização do direito”, compreendida como “ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores”, foi empregada pelos grupos da comunidade LGBTI+, ou seja, pelos “usuários”, para buscar na mais alta corte brasileira, o STF, o amparo normativo para a demanda de proteção aos integrantes da respectiva minoria. Consoante à ideia de que “a lei é mobilizada quando uma necessidade ou desejo é traduzido em uma reivindicação de lei ou afirmação de direitos legais” (ZEMANS apud McCANN, 2010, p. 182, tradução livre), a ADO 26 constitui-se em exemplo paradigmático dessa asserção, porquanto foi um dos instrumentos que a comunidade em questão empregou para efetivar seus pleitos.

Em segundo lugar, faz-se necessário perscrutar as motivações para a comunidade LGBTI+ (usuários) ter escolhido o Poder Judiciário como um locus para a realização dos seus interesses e valores. Na sua obra, McCann indica que os usuários recebem sinais simbólicos emitidos pelos tribunais, tais como ameaças, promessas, modelos, legitimidade etc. Esses sinais contribuem para traçar “o panorama ou a rede de relações na qual se encontram as demandas judiciais em curso dos cidadãos e organizações” (McCANN, 2010, p. 183). É possível inferir que o STF já havia emitido diversos sinais para a comunidade LGBTI+ que, possivelmente, contribuíram para o entendimento da abertura para o pleito presente na ADO 26. Entre esses sinais destaca-se a decisão resultante da ADPF 132, de 2001, favorável ao reconhecimento da união estável homoafetiva. Corrobora a inferência, o entendimento de McCann de que “as ações dos tribunais fornecem diversos ´precedentes´ estratégicos para as partes envolvidas”, que se tornam “fichas para negociação, resultantes de previsões sobre o que as partes conseguiriam se fossem parar nos tribunais”.

Em tempos em que a atuação contramajoritária dos tribunais fortalece-se, torna-se fundamental compreender algumas consequências desse processo, relacionando-o com a ADO em análise. Conforme observou McCann, a atuação dos tribunais aumenta a “relevância da questão na agenda pública e cria novas oportunidades para essas partes se mobilizarem em torno da causa”. No caso em tela, certamente, a decisão do STF ampliou a relevância na agenda pública da questão LGBTI+ e abriu campo para os militantes da causa expandirem suas demandas para novos vetores. Ressalta-se também que a decisão do STF que criminalizou a homofobia “fornece recursos simbólicos para esforços de mobilização em diversos campos”, dito de outro modo, possivelmente contribuirá para que outros grupos sociais minoritários utilizem-se dos tribunais como instrumento para a concretização de suas demandas. Desse modo, o ciclo é retroalimentado, favorecendo a expansão da atuação do Poder Judiciário para novas fronteiras.

    
Kleber  – UNESP - Direito - 1º ano DIURNO

Homofobia como crime de racismo
O documento trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão para se obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia. O texto ainda diz que “a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito ontológico-constitucional de racismo” ou “discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais”.
O ministro lewandowski cita o art. 5 da constituição federal, que trata da dignidade da pessoa humana imputindo o dever de se alterar a legislação contra esse tipo de agressão, dizendo “Bem analisados os autos, por relevante, ressalto que, como já afirmei em outras ocasiões, a demanda por reconhecimento é, contemporaneamente, componente essencial do conceito jurídico e filosófico do princípio da igualdade. Nesse diapasão, igualdade como reconhecimento é uma das principais reivindicações de grupos minoritários e de direitos humanos em todo o mundo” e “o não reconhecimento não é simplesmente uma questão de atitudes preconceituosas que resultam em danos psicológicos, mas uma questão de padrões institucionalizados de valor cultural que impedem a igual participação na vida social”. O ministro ainda cita os princípios da Yogyakarta para sustentar seus argumentos.
O direito sendo permeável a questões sociais, sofre a pressão por eles imposta e faz as pautas em que o Supremo tribunal é chamado a decidir, como no presente caso, mas também é reflexo do funcionalismo que vincula-se a complexização das funções do estado. Na modernidade, as lutas sociais vem reivindicando seus direitos, onde a mobilização é a reinvindicação por regulação. No contexto neoliberal, o que antes parecia algo moderado, hoje é a saída. Quando se mobiliza o direito, se busca a tutela. Com isso, a vulnerabilidade do estado é consequência da política neoliberal de destutelarização que ao chegar no judiciário, como última saída, transforma-se em mobilização social. Um sociedade que mobiliza o direito, é uma sociedade que mobiliza o poder democrático.
McCann diz em seu texto que “Embora se diferenciem em alguns detalhes, esses estudos afirmam que o fortalecimento do papel judicial ocorre quando os políticos vivenciam ou antecipam os desafios que poderiam enfraquecer o seu controle direto sobre as atividades políticas e, através disso, percebem as vantagens de transformar suas preferências políticas em textos constitucionais e delegar o processo decisório sobre essas questões para tribunais independentes, que irão proteger seus interesses contra o ataque de maiorias eleitorais futuras”. A demora inconstitucional do legislativo ao tema é alvo de crítica, assim como afirma o ministro “A omissão parlamentar em cumprir esse mandado pode ser compreendida como um fenômeno político. Os atores políticos têm ciência de que são mais facilmente responsabilizados perante eleitores por suas ações do que por suas omissões
Dados as devidas proporções, a indagação vai além da homofobia ser crime. Ela parte de uma máxima que vem do “o homofóbico é necessariamente racista?”. Por que enquadrar um fato de orientação sexual dentro de um crime como o racismo, para haver posteriormente uma norma especifica me parece querer jogar a poeira embaixo do tapete. Mas uma hora, a casa precisa ser limpa. De verdade. E as discussões acerca do tema precisam sair da justificativa dos magistrados de que “O estado já previa a tutelarização para os grupos sociais vulneráveis” ou “é pertinente colocar a homofobia como racismo, e não há necessidade cobrar o congresso acerca de fazer uma lei própria” - como afirma Alexandre de Moraes. É preciso sim! As pessoas morrem TODOS OS DIAS. Se já há dificuldade em punir os racistas, enquadrar a homofobia nessa caixa não me parece o mais sensato. Se o direito é um interventor social, então que a comunidade LGBTQI+ expresse de que forma ela vai se sentir mais legitimada na lei. E que o legislativo pare de se omitir perante assuntos cabíveis a ele, no país que mais mata homossexuais NO MUNDO.
Maria Júlia Fontes Fávero - Diurno

A luta pelo estabelecimento de crimes abandonados pela lei


Os votos e julgados analisados se passam em um contexto atual, no caso 2019, ano em que ataques e repressões a pessoas que possuem orientações sexuais e identidade de gênero aumentaram nitidamente. Nesse sentido, a decisão pela criminalização da homofobia e transfobia pelo Poder Judiciário, no início do ano citado, tem um cunho simbólico de alto impacto para esse grupo marginalizado pela lei, até então.
Dessa forma, em primeiro instante pode-se destacar que o judiciário, assim como o poder executivo e legislativo, deve exercer a sua função -definida objetivamente como aquele que verifica o cumprimento das leis. Sendo assim, é importante frisar que ele não pode desenvolver o caráter de executar leis porque não é apto a exercer tal função e não fora eleito para tal, contudo, é inegável que com o aumento das demandas e tomada de consciência pela população brasileira de seus direitos fundamentais garantidos na constituição, aqueles que deveriam representar os interesses do povo estão estagnados em ideias conservadoras, paternalistas e tradicionalistas, evitando que assuntos acerca do social, como a legalização do aborto e a criminalização da homofobia e transfobia possua um pauta de destaque dentro das discussões que deveriam ocorrer diariamente -uma vez que são necessidades populares.
A partir desse aspecto, consegue-se conectar o pensamento de Michel McCann, no texto Poder Judiciário e a Mobilização do Direito: uma perspectiva dos usuários, lugar em que o autor expressou que realmente o judiciário está atuando ativamente no Estado, inclusive em assuntos de grande impacto na sociedade. Portanto, a mobilização do direito, perante o povo, acontece porque ela está exposta as modificações que este sofre a todo momento, e, sob influência de um setor da comunidade, ele promove discussões e tentativas de resoluções de problemáticas propostas. Isto posto, é fundamental perceber a partir da visão de McCann é que se o direito não se mobilizar por pautas sociais, um outro órgão não irá fazê-lo, pois é uma possibilidade de acesso à justiça a uma parte de indivíduos não favorecidos e que tem direitos, dado que na ADI por Omissão 26/DF, no voto do ministro Ricardo Lewandowski, ele cita que o Presidente do Senado Federal defendeu a improcedência dos pedidos porque já existe tipificação penal contra crimes de honra, homicídios, lesão corporal -ou seja, contrário a especificação de crimes contra a comunidade LGBTQ+ e que aumentam ano após ano.
No entanto, o que não se pode esquecer é que quando não se especifica os grupos a serem abrangidos por uma lei, sempre existe uma outra parcela que não é abarcada e não se identifica com o que está escrito. Por esse motivo, a Lei Antirracismo -crimes de praticar e induzir a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou precedência nacional- não abarca a homofobia e transfobia, sendo necessária a formulação de uma lei específica para que todos tenham a consciência de que tal atitude significa um crime tipificado pela legislação brasileira, não estando a mercê de interpretações jurídicas apenas.
Logo, como bem explicita o ministro Lewandowski, há uma dívida histórica da população e justiça brasileira a respeito da desigualdade de gênero, contra mulheres, comunidade LGBTQ+. E assim, o ideal não seria o judiciário possuir como responsabilidade induzir a facção de uma lei sobre o assunto, mas, é uma forma válida encontrada por esse grupo marginalizado de discutir a pauta em um nível de poder que tem a capacidade de instigar o poder Legislativo de introduzir a pauta nas reuniões dos políticos e criminalizar por lei este crime tão severo que ataca a integridade física, moral e psicológica, e qualidade de vida desses seres humanos.

Sarah Fernandes de Castro - Direito/Noturno 

A mobilização do direito frente à inércia legislativa do Congresso Nacional

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) é a ação pertinente na justiça para demandar que o Poder Legislativo realize a tarefa de editar norma regulamentadora a qual a Constituição Federal o obrigou a fazer, mas ele ainda não o fez — este fenômeno jurídico de descumprimento da Constituição é denominado “inconstitucionalidade por omissão”. A ADO tem, portanto, o propósito de provocar o judiciário para que seja reconhecida a demora na produção da norma.

Sendo o Supremo Tribunal Federal (STF) o “guardião da Constituição”, cabe a ele, como órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro, julgar questões sobre o parâmetro da inconstitucionalidade. Nesse sentido, o Tribunal julgou a ADO 26, proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS).

Com o propósito de corrigir a inércia do Poder Legislativo, o PPS requereu ao STF que este obrigasse o Congresso Nacional a editar uma norma que proteja as pessoas homossexuais e transexuais, e que puna discriminação e preconceito por razões de orientação sexual, tal qual o Congresso fez com os crimes relativos à discriminação por raça, cor, etnia, religião e procedência nacional.

Como efeito, o STF, por maioria, reconheceu parcialmente a ADO. Consoante o inciso XLI do art. 5º da Constituição, que disserta que a lei “punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, o Tribunal reconheceu o estado de mora inconstitucional do Poder Legislativo em editar uma norma contra a homotransfobia; além de enquadrar homofobia e transfobia como racismo, mais especificamente “racismo social”, nos termos do inciso XLI (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei) e da Lei 7.716/89 (“serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”) até o Congresso Nacional editar legislação autônoma. 

Dessa forma, o sentido da expressão “raça” foi ampliado, mediante interpretação constitucional, de maneira a abranger atos tidos como homofóbicos e/ou transfóbicos.

Sobre o contexto dessa ADO, o ministro Ricardo Lewandowski declarou durante seu voto que: 


“[…] os tribunais tornaram-se instituições sensíveis aos reclamos de grupos sistematicamente excluídos da esfera política, contando com o apoio — explícito ou implícito — dos atores políticos, os quais, ao transferir sua responsabilidade para as instituições judiciais, evitam sua responsabilização política por decisões impopulares” (2019, p. 9)


E é a partir dessa perspectiva de ação coletiva que Michael McCann discute o seu conceito de mobilização do direito. De acordo com McCann, a “[…] mobilização do direito se refere às ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores”  (2010, p. 182) e é por isso que os tribunais são importantes de tal modo que se tornaram poderosos nos regimes políticos, posto que eles se constituem como o cenário no qual os cidadãos e organizações se engajam.

Em suma, frente à inércia legislativa do Congresso Nacional, “[…] opções e recursos estratégicos e até objetivos são, em certa medida, fornecidos pelo direito e pelas instituições que o aplicam” (Galanter, 1983, p. 119) e, por isso, “a lei é mobilizada quando uma necessidade ou desejo é traduzida em uma reivindicação de lei ou afirmação de direitos legais” (Zemans, 1983,  p. 690-703). 

Thayná Roque de Miranda - Matutino

BIBLIOGRAFIA

LEWANDOWSKI, Ricardo. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, de 13 de junho de 2019. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26votoMAM.pdf>. Acesso em: 26 de setembro, 2019. Brasília, 2019, p. 2-19.
McCANN, Michael. Poder Judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos “usuários”. In: Anais do Seminário Nacional sobre Justiça Constitucional. Seção Especial da Revista Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª. Região/Emarf, 2010, p. 175-196.
ZEMANS, F. K. Legal Mobilization: The Neglected Role of the Law in the Political System. American Political Science Review, n. 77, 1983. p. 690-703.
GALANTER, M. Reading the Landscape of Disputes: What We Know and Don't Know (and Think We Know) about our Allegedly Contentious and Litigious Society. UCLA Law Review, n. 31, 1983, p. 4-71.

Ditadura do Judiciário ou Democracia soberana?

  A partir da década de 90, as discussões acerca do fenômeno tratado como Judicialização passaram a tomar grande parte das pautas universitárias e sociais pelo Brasil. Para muitos, tal fenômeno de mobilização do Direito inaugura uma ditadura judiciária, enquanto que, para outros, constitui a essência do exercício reivindicativo democrático. Diante desse dilema acerca dessa mobilização recente e cada vez mais constante de discussões inseridas na esfera judiciária, diversas conquistas fundamentais podem e devem ser ressaltadas, entre elas, enquadra-se a criminalização da homofobia.
O processo o qual culminou na criminalização da homofobia foi resultado de variadas etapas prolongadas por anos até o alcance efetivo do STF. Atravessaram-se longas etapas consistentes na ADO 26  movida pela sociedade de advogados Vecchiatti em 2013; pedido de declaração de omissão do congresso por não votar projeto sobre a criminalização da homofobia enquadrada como crime de racismo- erguido pelo PPS em 2013; até o enquadramento da homofobia e transfobia como crimes de racismo pelo reconhecimento da omissão do Poder Legislativo em Junho deste ano de 2019. Diante de toda essa trajetória viajante entre competências legislativas omissivas e o Poder Judiciário sendo pressionado e provocado constantemente, é inevitável reconhecer a importância da atuação do STF sobre tal temática de grande relevância à garantia de direitos e proteção a integrantes da comunidade LGBTI+.
  Nesse sentido, tendo em vista a interpretação de McCann acerca dos tribunais como atuantes catalisadores, a criminalização da homofobia, diante do contexto atual regido por intolerância, preconceitos, discriminação, configura realmente o aceleramento de conquistas sociais as quais têm a capacidade de difundir ainda mais temáticas reivindicativas de tantas minorias invisibilizadas pela própria dinâmica social órfã de atuações efetivas de outros poderes, como o Legislativo. A mobilização do Direito a fim do enquadramento ilegal de condutas preconceituosas apenas evidencia o quanto a atividade judicial em defesa de direitos fundamentais reivindicados é capaz de sustentar e aumentar o vigor democrático. Dessa maneira, como McCann bem aponta, diante da abstenção legislativa- ADO 26, a demanda, ao alcançar o STF, é um objeto legítimo politicamente justamente pelo seu caráter de enfoque em sujeitos sociais, os quais recorrem à chamada competência do poder constitutivo da autoridade judicial.
  Cumpre observar também que, com base no voto proferido pela Ministra Cármen Lúcia, por exemplo, consistente na relevância da realidade prática, concreta caracterizada por números alarmantes de homicídios contra homossexuais e travestis motivados pelo ódio e preconceito, a criminalização é mais do que uma demanda urgente. Tal como a Ministra expressa em seu voto, a situação de vida de muitos indivíduos perseguidos e mortos por sua orientação sexual configura, verdadeiramente, uma barbárie. Por conseguinte, é insustentável que a orientação sexual de cada ser configure um pretexto para que este seja tratado de modo desigual e discriminatório tendo em vista que a Constituição Federal, composta por todos os preceitos fundamentais ao ser humano, não deve ser tratada meramente como um pedaço de papel. Quanto a essa mera objetificação pejorativa da Constituição, Madalena Duarte também se posiciona como defensora do fim da discrepância existente entre o direito legislado- quando este não é omitido- e o direito prático. Desse modo, inclusive em acordância com McCann, o Judiciário, legítimo guardião da Constituição, deve atuar em compromisso com a realidade concreta a qual move tantas demandas sociais alimentadoras do regime democrático e almejantes de uma verdadeira emancipação social através do Direito.
  Por conseguinte, a atuação catalisadora do STF frente à demanda da ADO 26 de criminalização de ações atentatórias a direitos fundamentais de qualquer cidadão, como direito à liberdade, à autodeterminação, ao estabelecimento de união estável, integridade física e psíquica, dignidade, etc., representa, não somente a conquista de resguardo de direitos e a punição para quem infringi-los, mas também, lança reflexos sobre toda a dinâmica cultural e social da comunidade plural brasileira. A criminalização traz, logo, consigo um suporte concreto de segurança jurídica reivindicada de esferas populares, inferiores e, então, afirmadas e emanadas pela mais alta instância jurídica do país. Cabe, agora, um questionamento: tal importância atuante frente à omissão de outros poderes caracterizaria uma ditadura judiciária?

Lorena Yumi Pistori Ynomoto - Direito Noturno