segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Legalidade seletiva e silenciamento forçado.


            A colonização foi um movimento que iniciou na transição do século XIV para o XV, em que os países buscavam afirmar sua hegemonia impondo seus valores para aqueles que eram considerados inferiores, logo, foram explorados seus recursos e angariado novos territórios. Nessa lógica, foi gerada uma hierarquização cartográfica, a qual subjugou o famigerado Sul. Diante disso, o menosprezo para com esses locais não se limitou à época e reverberou em demais áreas do saber, exemplo disso foi o próprio âmbito jurídico. Assim sendo, é necessário analisar a dicotomia criada pela legalidade – legal e ilegal – e o conflito que os desiguais encontram para ganhar visibilidade nesse contexto.
            A princípio, ao considerar a vivência populacional, é nítido que a abissalidade existente entre os seres está presente em todo o cotidiano, de modo que a linha traçada para definir o que é correto embasa-se na legalidade. Uma típica “legalidade” eurocêntrica que provém de uma classe que pretende manter sua preponderância, a qual endossa uma prioridade da propriedade privada em detrimento da dignidade. Para o sociólogo Boaventura de Souza Santos, o legal e o ilegal são as formas relevantes que determinam a existência perante a lei, dessa forma, aquele que está em uma condição de “ilegalidade” não existe, ou melhor, torna-se invisível. Essa monocultura jurídica é instrumentalizada, pois aquele indivíduo não consegue garantias nem mesmo para sua sobrevivência, quem dirá para se adequar nas “legalidades” moldadas desse sistema que se transveste de racional e de justo, mas que é parcial e subjetivo, agindo de maneira proposital para que essa população não adentre nessa afamada “ordem”.
            Não obstante, há uma naturalização das diferenças, de modo que “legaliza” uma cultura de dominação e exploração, ofuscada pela crença na meritocracia. Exemplo disso pode ser encontrado no caso da Fazenda Primavera que foi levada à julgamento devido a ocupação do MST. Para os defensores da monocultura, os ocupantes estavam se apossando de uma propriedade privada da qual não tinham direito – ou, ainda, um direito “inferior” -, não seriam produtivos para o país, logo, não devem ser protegidos ou valorizados pela lei. No entanto, esquecem que há um embasamento legal para esses indivíduos, baseado na função social da terra. Tal suposta antinomia jurídica demonstra a instrumentalização do direito, de maneira que quem atribui o sentido às normas é o próprio intérprete, portanto, podendo reafirmar ou não a epistemologia nortenha. Nesse caso específico, percebe-se que é oferecido visibilidade aos ocupantes – afirmando este “espaço dos possíveis” -, dando uma horizontalidade às demandas e fazendo uso da ecologia de direitos.  
            Portanto, a partir do exposto, nota-se que há uma corrente que tende a silenciar aqueles que estão marginalizados pelo direito, não reconhecendo nem mesmo sua dignidade, para que o domínio classista seja efetivo. Nessa lógica, deve-se dar voz às epistemologias do sul e recuperar ordenamentos que foram apagados juridicamente, assim, garante-se uma diversidade de direitos e justiças, uma vez que não há somente uma perspectiva de legalidade. Inclusive, casos como o exposto pelo julgado recebem uma possibilidade de inclusão, oferecendo uma primazia para uma emancipação jurídica, além de demonstrar que a justiça não está a serviço do capitalismo ou da produtividade. Dessa forma, pode-se vislumbrar, como diz Sara Araújo, uma aprendizagem jurídica recíproca.  

Bianca de Faria Cintra - Direito Noturno, 1º Ano.

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