segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Ecologia de direitos e de saberes: Universo de perspectivas


Bruna Araújo identifica duas características latentes do direito contemporâneo. Um forte eurocentrismo e um sentido colonizador que relembra os tempos em que os europeus saiam com suas caravelas pelo mundo, para impor seu modo de pensar, viver e ver o mundo aos demais. Assim, esses são os dois grandes problemas do direito contemporâneo no mundo, o forte modelo eurocêntrico do direito e a imposição desse modelo para todos os países e nações do globo terrestre.
A autora é claramente influenciada pelo livro Epistemologias do Sul, escrito por Boaventura de Sousa Santos. Nesse livro, é proposto um modelo de interpretação onde o Norte teria subordinado o Sul impondo a sua maneira de produzir conhecimento e enxergar o mundo. Grosseiramente, daria para afirmar que a Epistemologia do Norte funcionaria como um Fato Social na visão de Durkheim, onde Fato Social é tudo aquilo que pela maneira que as coisas estão dispostas na sociedade se impõe aos indivíduos sob pena deles ficarem de fora de um conjunto. Embora, Durkheim não se encaixe perfeitamente para explicar a imposição de uma Epistemologia do Norte, a pena para quem não aderir a ela é ser taxado de atrasado e ficar de fora do conjunto dos países desenvolvidos.
Portanto, a Epistemologia do Norte é imposta praticamente a todos os indivíduos que vivem sob a influência ocidental, mesmo os que acham estar completamente imune a ela. Um exemplo simples e prático é que muitos historiadores da USP comemoram a introdução de cota para indígena no vestibular da FUVEST, com o argumento de que agora os índios poderão ser sujeitos ativos na escrita de sua história. Evidentemente, que a cota é justa e necessária, mas comemorar e argumentar que os indígenas só poderiam escrever sua história a partir do ponto de vista que eles adentrem em uma faculdade de matriz francesa, é impor a cultura do ocidente sobre a dele, é afirmar que se quiserem ter a cultura deles valorizada é necessário que se submetam as instituições ocidentais.
Sara Araújo, analisa um movimento parecido que ocorreu com o direito. Se a cultura indígena é valorizada dentro da visão ocidental, apenas se seguir a Epistemologia do Norte. Como a história indígena ser feita por indígenas formados em história pela USP, ou os saberes “medicinais” indígenas só serem validados após serem avalizados pela ANVISA e validado por uma importante universidade pública, com o direito ocorre a mesma coisa.  A autora chama atenção para o conceito de pluralismo jurídico que foi instrumentalizado por instituições ocidentais e perdeu sua pluralidade. O que ocorre é uma subordinação de saberes jurídicos, onde os saberes jurídicos não ocidentais só serão utilizados para servir de instrumento do acessório principal que é o direito europeu.
Para romper com essa subordinação, a autora lança mão do termo ecologia de direitos, que no âmbito geral poderia ser denominado de ecologia de saberes. Onde agora não é mais o Sul subordinado ao Norte, e sim ambos nos mesmos níveis com saberes jurídicos lado a lado, sempre somando um ao outro. No lugar de toda produção material e "intelectual" ser examinada a partir da perspectiva europeia e, eventualmente, um conhecimento “marginalizado” servir de instrumento, agora todo produção é analisada a partir de várias perspectivas e nenhuma se sobrepõem a outra.
No julgamento da reintegração de posse da fazenda está posto este debate, não há uma negação absoluta do direito do proprietário a rever a sua propriedade. Mas há um debate maior que isso, seria o modo de produção empregado por ele o único válido? O MST tem o direito de ocupar todas as fazendas? O direito do proprietário se sobrepõe aos dos demais? O direito dos demais se sobrepõe ao do proprietário? Assim, pode haver uma ditadura de uma maioria? A resposta para todas as questões é não. Sara Araújo não propõe a destruição do latifúndio. Mas ela propõe uma nova maneira para o mundo, não é só latifúndio, é também a pequena propriedade, outros modos de produção que não somente o intensivo. É o Sul mais o Norte, e não um excluindo o outro, é abarcar todos os pensamentos e mostrar que não há somente uma verdade e um jeito de se viver em mundo em que predomine a ecologia de saberes. Assim, é compreensível que exista votos divergentes no julgamento, e devemos analisar cada um em sua perspectiva sem descartar nenhuma, mas defendendo as perspectivas que acreditamos serem mais justas. É isso que os desembargadores fazem em seus votos, tantos os dois que votaram contra a reintegração de posse e trazem argumentos constitucionais e humanitários favoráveis aos sem-terras em seus votos, quanto o desembargador que vota a favor da reintegração de posse alegando que o proprietário teve suas posses invadidas e assim, consequentemente,  seus direitos violados.  

Ricardo da Silva Soares-Noturno.

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