domingo, 29 de setembro de 2019

As decisões dos tribunais como forma de evolução social


A criminalização da LGBTfobia, realizada pelo Supremo Tribunal Federal no primeiro semestre de 2019, foi responsável por reviver uma discussão inerente ao mundo contemporâneo, tanto na realidade brasileira quanto em outros Estados: o processo de judicialização da política, sua validade e seus efeitos.

A ADO (Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão) nº 26 do Distrito Federal foi ajuizada pelo Partido Popular Social (PPS) contra o Congresso Nacional, alegando uma demora excessiva por parte desse para tipificar a homofobia, sendo o termo mais correto LBGTfobia, como um agravo da agressão ou homicídio, constituindo um novo crime. Esse mecanismo, semelhante ao que acorre ao utilizarmos a denominação “feminicídio”, atuaria como um ato simbólico da utilização do Código Penal para afirmar a importância da população LBGT+. Em uma decisão anterior, foi fixado um prazo para que as casas legislativas editassem diretrizes específicas para a criminalização. Com o esgotamento desse prazo e a falta de ação dos legisladores, a ação voltou a correr e o STF tomou a decisão de incluir a LBGTfobia dentro do rol de racismo, uma vez que tal prática vai além de entendimentos sobre etnias, sendo uma construção histórico-cultural discriminatória que visa o controle ideológico.

O entendimento do Tribunal partiu do ponto que a dita criminalização não impede a liberdade de expressão de grupo religiosos, que tendem a condenar as orientações sexuais e identidades de gênero desviantes do espectro cisheteronormativo. Uma vez que tal posicionamento não configure um discurso de ódio, ou seja, não incite violência contra essa população, as entidades religiosas continuam tendo sua autonomia e direito de discurso preservados. Em outras palavras, figuras religiosas podem dizer que não concordam, ou até mesmo que Deus não é favorável a esses comportamentos, considerados desviantes, desde que não incentive os fieis a violentarem ou discriminarem esses grupos.

Em relação ao processo de judicialização, observamos a ação dos Tribunais em situações que deveriam ser resolvidas pelo Poder Legislativo; entretanto, de acordo com Michael McCann, devemos entender essa tendência como algo que vai muito além da simples “vontade” dos magistrados de intervir, uma vez que se trata de um processo que envolve diversos outros atores, tanto do próprio Estado quanto da sociedade, e a mobilização do direito consiste em "ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores", tornando-se, assim, um importante instrumento democrático.
A população age ativamente para esse processo quando passa a demandar mudanças que não acredita que virão de seus legisladores; e os próprios políticos também o fazem, em uma ação estratégica, ao delegar decisões polêmicas aos juristas por medo de consequências políticas, como possíveis quedas na popularidade.  Chega-se, portanto, à conclusão de que o processo de judicialização não parte somente dos tribunais, ou seja, eles não são os grandes "vilões" que buscam a supremacia. Este processo também envolve a interação da sociedade com os magistrados, visando a uma tutela cada vez maior.

Essas decisões judiciais são entendidas como “fichas para a negociação”, segundo McCann, uma vez que raramente apaziguam conflitos; na realidade, sua tendência é atiçá-los. Levando em consideração que as deliberações do judiciário abrem precedentes para que mais grupos interessados ajuízem suas reivindicações e busquem, cada vez mais, um desenvolvimento, uma mudança na mentalidade social vigente. A título de exemplo, a equiparação da União Estável (que permite o reconhecimento de direitos a casais homoafetivos) ao casamento abriu precedentes para que, anos depois, a ação aqui analisada (ADO nº26/DF) fosse ajuizada, e a LGBTfobia fosse finalmente criminalizada. A atuação do poder judiciário no primeiro caso forçou a sociedade a se adaptar a uma nova realidade e permitiu que a luta da população LBGT+ avançasse.

Julia Parreira Duarte Garcia - Direito Matutino



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