quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Direito, Religião e Anencefalia


          No ano de 2012 foi julgado, pelo Supremo Tribunal Federal, um pedido de inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, que enquadraria como crime a prática do aborto nos casos em que o feto é diagnosticado com anencefalia. Iniciou-se um intenso debate enquanto ao tema na corte, com os ministros dando seus pontos de vista a respeito do tema.


          Destarte, vários grupos religiosos tentavam utilizar conceitos e pregações de suas crenças como argumento para criminalizar tal prática. Um importante sociólogo francês, Pierre Bordieu, conceitua o Direito como uma relação positiva da ciência, aliada a uma lógica normativa da moral. A interferência de grupos e argumentos de viés exclusivamente religioso em meio a um tema jurídico seria uma ruptura da própria dinâmica do Direito, já que são argumentações que não apresentam uma lógica científica por trás.


          Ademais, o ministro relator do caso, Marco Aurélio, conceituou dentro do seu voto que não se pode colocar a argumentação desses grupos como inválida, pois o debate deve dar voz a todos, mas os argumentos destes grupos devem estar baseados em motivações públicas cuja adesão não dependa exclusivamente de uma ótica advinda de uma vertente religiosa especifica. Seria uma extrapolação do espaço do possível do campo religioso, já que não cabe-lhe a interferência indevida no campo jurídico.


          Dentro de outro importante conceito de Bordieu, o da historicidade da norma, cabe encaixar uma situação nova e adversa dentro de uma norma preexistente através de um processo de analogia para o preenchimento de uma eventual lacuna. Aplicando este conceito dentro da situação supracitada, embora o aborto de fetos anencéfalos não esteja previsto no ordenamento jurídico brasileiro, é possível encaixá-lo dentro de outras normas que liberam a prática do aborto. 


          Levando em conta a conjuntura degradante em que a mulher encontra-se, uma visão mais ampla dos princípios do direito nacional e de várias garantias fundamentais presentes na Constituição Federal, como o da preservação da integridade física, psicológica e da dignidade da gestante, a manutenção compulsória da gestação iria acarretar em diversos danos ao seu corpo e ao seu estado emocional, tornando a antecipação terapêutica do feto anencéfalo como a opção mais plausível e menos dolorosa para a mãe.
          Não cabe ao Estado submeter a mulher a uma situação análoga à tortura, já que é o dever dele e de seus órgãos prezar pelo bem-estar físico e psicológico de seus nacionais e dos estrangeiros residentes no mesmo. Seria uma quebra ainda de tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, em que assumiu compromissos de proteger as mulheres de violências e abusos.

João Lucas Albuquerque Vieira
Direito Matutino
Universidade Estadual Paulista - Campus de Franca

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