quinta-feira, 15 de agosto de 2019

ADPF 54: a ilustração da dupla lógica do Direito.

  A observação da atuação do Judiciário no Brasil atualmente ocasiona reflexões sobre os engendramentos da atividade judiciária e até de um ativismo dos magistrados diante do campo social - termo utilizado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu para nomear um espaço social em uma ideia de totalidade diante do conflito de forças e de fragmentos distintos. Nesse sentido, o campo jurídico também está relacionado com o campo social, uma vez que o Direito, na visão do cientista social mencionado, é ambientado por estruturas internas e externas a si, formando as práticas jurídicas tanto pelas questões vindas da sociedade quanto pelos sistemas formais e metodológicos próprios da teoria jurídica.

  Um caso prático dessas relações jurídicas e sociais pode ser observado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54 ), ato que discutiu a inconstitucionalidade da interpretação sobre a interrupção da gravidez de um feto anencéfalo perante o Código Penal brasileiro. A alegação para essa ação relatada pelo Ministro Marco Aurélio fundamentou-se no risco de segurança jurídica sofrido por trabalhadores da área da saúde ao participarem dessa interrupção de gravidez, uma vez que partindo do código Penal nos artigos 124,126 e 128 tal atitude poderia ser julgada criminosa; essa alegação foi afirmada também na violação dos direitos da mulher assegurados em nossa Carta Maior  à liberdade, à privacidade, à saúde e à autonomia ao realizar esse procedimento de antecipação da gravidez. Por outro lado, suscitaram dos Ministros Ricardo Lewandowski e Cesar Peluso posicionamentos contrários à possibilidade de interrupção da gravidez de um feto anencéfalo, os quais se embasaram na duvidosa legitimidade da ADPF, já que o Judiciário estaria se sobrepondo à uma responsabilidade do Legislativo como representante do poder político autorizado pela sociedade a partir do voto. Além disso, os argumentos contrários também questionaram a incapacidade de definição do que seria ou não vida diante da condição patológica informada na arguição por competentes órgãos da saúde, como a OMS, o Conselho Federal de Medicina, o Ministério da Saúde e a Associação Brasileira de Psiquiatria, por exemplo.   

  Diante dessa discussão nota-se o embate de contrários, também comentado por Bourdieu, no fazer do Direito ao gravitar a ADPF em situações de apelo e necessidade práticos, como a reivindicação da saúde da mulher e a situação do feto anencéfalo, e de essência técnica e teórica, como no debate sobre a positivação de direitos na atuação não só jurídica quanto política do STF e na gravitação conceitual do que é ou deve ser considerado vida no campo social e seus subcampos do Direito, da Medicina e da Moral entre outros. Percebe-se claramente a "dupla lógica" do campo jurídico e a busca de capital que possibilite a posse da razão pública e universal, a qual dirá pela linguagem jurídica tão bem colocada nas citações até literárias dessa ADPF o que e quem está certo e imbuído de poder simbólico, isto é, de autorização e de legitimidade para interpretar a realidade.

  A questão da interrupção da gravidez de feto anencéfalo ilustra a importância da maleabilidade do Direito por questionar a historicidade da norma no campo jurídico diante da vulgarização do ativismo do judiciário ao adentrar uma area que teoricamente não é de sua plena competência e sim do Legislativo, sendo nas palavras de Bourdieu fora do"espaço do possível" do Direito; e por criticar também a sistematização formal que prega uma auto-suficiência do campo jurídico fechado em si, que desconsidera os movimentos e os conflitos da realidade social e suas exigências perante as estruturas jurídicas. Configurando-se essa ADPF, portanto, em um exemplo prático da autonomia relativa do Direito.


Júlia Jacob Alonso
1º Ano Direito Matutino - Unesp. 

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