domingo, 18 de agosto de 2019

Pierre Bourdieu, Ricardo Lewandowski e a questão do aborto de anencéfalos

O tema do aborto de anencefalos é muito atual, principalmente pelo aumento dos casos da doença causados pelo surto de zika vírus. O judiciário, assim como toda a sociedade, considerou o caso antes mesmo desse aumento em uma decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou a ADPF 54 e julgou improcedente a tipificação do aborto de anencefalos como um crime estipulado pelos artigos 124 e 126 da Constituição Federal. Entre os minjstros, apenas 2 votaram a favor da improcedência da ação que declara inconstitucional a interpretação casuística do aborto de anecefalos ser tratado como o aborto de fetos saudáveis.
No julgamento foi possível reconhecer diferentes pontos de vista que refletem o posicionamento da população em geral sobre o polêmico assunto. As posições contra o aborto são, geralmente, baseadas em crenças religiosas e conceitos de moral individuais, sendo uma base inconsistente do ponto de vista jurídico. No entanto, o ministro Ricardo Lewandowski fundamenta seu posicionamento contra a partir de outros preceitos, não menciona a possibilidade de vida ou onde esta se inicia, visto que esse assunto é o foco das mais acaloradas discussões nas áreas humanas e biológicas.
Os principais pensamentos de Pierre Bourdieu podem ser aplicados na análise do voto do ministro, que possui uma visão racionalizada para o caso, focalizando nos próprios princípios jurídicos e na forma de organização legal do Estado.
Lewandowski embasa sua argumentação no dispositivo legal vigente, mais especificamente nos artigos 124, 126 e 128 da constituição. Os artigos 124 e 126 estabelecem as penas para os envolvidos em um aborto, demonstrando a ilegalidade de tal ato, produzindo consequências legais por meio de penas especificadas.
O artigo 128 faz ressalvas, ou seja, expõe quais os casos em que a prática do aborto é legal e não gera sanções, são dois os tipos, o aborto necessário e o sentimental.
O ministro, ao interpretar as normas afirma que o caso de aborto de fetos anencefalos não está presente nas ressalvas do art. 128, sendo, perante a lei, ilegal.
Refuta qualquer tipo de argumentação que julga a legislação vigente como ultrapassada ao salientar que os diagnósticos desse tipo de doença já eram conhecidos em momentos em que a lei sofreu algumas alterações.
Como o direito possui um caráter universalista ao utilizar em seu texto a forma verbal indicativa, demonstrando objetivamente a generalidade da lei, não é possível,  em hipótese alguma, modificar uma norma sem os devidos processos legais. Além disso, admite que o direito é constantemente modificado pelas mudanças sociais contínuas ao citar as modificações que essa regra já sofreu desde sua publicação, mas expõe que a lógica duplamente determinada no campo jurídico permite que o direito também influencie diretamente a sociedade a partir de suas regras de conduta preestabelecidas.
Também é possível identificar no voto do ministro a fundamentação de uma parte de sua argumentação baseada no espaço dos possíveis de Pierre Bourdieu, pois procura delimitar o espaço de atuação do judiciário no direito.
Afirma a extrema importância da hermenêutica ao mostrar sua presença ainda na Grécia Antiga e expõe sua complexidade, que pode suscitar em interpretações divergentes, ao citar os conhecimentos exigidos nessa prática.
A interpretação da lei deve ser feita pelos juristas, mas com uma presunção inicial de constitucionalidade baseada na "lógica do razoável" de Chaim.
         " Isso porque, como explica Uadi Lammêgo Bulos, esse método de
interpretação funda-se na “lógica do razoável”, cogitada por Chaim
Perelman, de acordo com a qual se deve presumir a obediência do
legislador aos ditames constitucionais, sem, contudo, deixar-se de lado,
ao interpretar a lei, as questões políticas, econômicas e sociais
correspondentes ao contexto fático sobre as quais as normas da
Constituição incidem."
Esse pressuposto baseia-se na codificação do direito pela formalização, legitimando a norma por sua neutralidade, generalidade, coerência, lógica e legalidade ao seguir as próprias regras desse campo.
O papel do judiciário é reforçado no voto do ministro que expressa que apesar de possuírem autoridade para interpretar a lei, há um limite, visto que não é possível ignorar o sentido literal da norma. Caso isso ocorra, os magistrados estariam abusando de seu poder ao adquirir competências e autoridades exclusivas do legislativo.
A universalização também está presente na defesa do ministro de expandir a temática à todas as doenças que causam anomalias no feto e a impossibilidade da vida extra uterina.
Lewandowski não despreza a importância do tema, mas salienta a divisão evidente tanto no âmbito social quanto no jurídico, que reflete a divisão de posicionamento do povo, e defende a possibilidade de modificação da norma a partir de um procedimento legal de competência do legislativo.
Para evitar uma tentativa de contra argumentação, relata que há projetos de lei em tramitação no congresso, como o PL n° 4403/2994 que propõe adicionar a possibilidade de aborto legal de um feto com anomalia ao artigo 128 da constituição. Assim, afirma que o legislativo está cumprindo seu papel e, por isso, é preciso respeitar a função de cada órgão e cargo que se complementam no funcionamento legítimo do campo jurídico.
Em seus argumentos é evidente a desvinculação do tema com a religiosidade e a análise metódica da procedência da própria decisão do Supremo Tribunal Federal, pois considera que decidir sobre essa questão nas condições estabelecidas não seria de competência do judiciário, mas sim do legislativo segundo as regras do campo jurídico.

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