sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A interpretação da classe dominante


Pierre Bourdieu foi um sociólogo francês, influenciado por Michel Foucault, Karl Marx e Émile Durkhein, principalmente. Em sua obra “O Poder Simbólico”, o autor discorre sobre a força do direito, como a sociedade é influenciada pela classe dominante, a divisão do trabalho jurídico, o monopólio, a força da forma e os efeitos da homogenia. A partir desses temas, é possível perceber a influencia de uma classe dominante nas decisões da atualidade.
Para o sociólogo francês, existe um ambiente interno e um ambiente externo ao campo jurídico. O ambiente externo é a junção da religião, da cultura e da moral. Já no espaço interno do campo jurídico, há apenas o espaço dos possíveis, composto pela doutrina, pela jurisprudência e pela produção cientifica. Dentro desse campo jurídico, é onde acontece a concorrência pelo monopólio do direito de dizer, de afirmar o que está escrito naquela lei, de fazer a sua própria interpretação dela.
O campo jurídico é impessoal, neutro e universal para que seja o mais justo possível com todas as classes da sociedade. Desse modo, a divisão do trabalho cria uma dominação simbólica, que racionaliza o direito, tornando-o ético. No entanto, nem todos são capazes de entrar no espaço judicial (lugar neutro e organizado para que haja discussões) e dessa forma, cria-se um monopólio, uma classe dominante que define o que é universalmente reconhecido. Essa “verdade” da classe dominante se naturaliza, tornando-se legítima.
Podemos dizer, portanto, que quem aplica o direito é quem tem o poder simbólico, que são o político, o econômico e o temporal. Uma tendência da classe dominante é a de universalizar o seu próprio estilo de vida, o que chamamos de etnocentrismo dos dominantes. Dessa forma, Bourdieu revela que a homologação tornaria o direito mais racional, já que com ela, a palavra e o som dessa mesma palavra têm o mesmo significado, ou seja, não seria possível que houvesse diferentes interpretações para uma mesma palavra.
Relacionando as idéias de Bourdieu e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, na qual os ministros do Supremo Tribunal Federal votaram contra ou a favor da interrupção legal de gravidez de feto anencéfalo, pode-se concluir as diferentes interpretações feitas por eles sobre um mesmo assunto.
De acordo com os ministros Gilmar Mendes e Luiz Fux, a integridade física e psíquica da mulher deve ser preservada. Bourdieu acreditava na racionalização do direito e, portanto, a neutralização dentro do campo jurídico é essencial. Segundo o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é um direito fundamental que deve ser garantido pelo Estado. Além disso, se o feto nascerá morto, não se configura crime o aborto. Desse modo, se a saúde da gestante corre riscos durante a gestação de um anencéfalo, e como o direito é neutro, ou seja, “cego”, a saúde, direito fundamental, deve ser resguardada.
Ademais, de acordo com os ministros Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Carmen Lúcia, Ayres Britto e Celso de Mello, a gestante tem a liberdade de escolha. Bourdieu, ao tratar da universalização do direito, possibilita que a classe dominada seja um pouco mais representada. De acordo com o artigo 5° da Constituição Federal, a liberdade é um direito fundamental. Destarte, pode-se inferir que, para que o direito seja um pouco mais racional e justo, a gestante deve ter a liberdade de escolha, já que ela é quem tem sua dignidade afetada.
No entanto, de acordo com o ministro Ricardo Lewandowski, o aborto é crime de qualquer maneira, sendo ele eugênico ou não. Dessa forma, não é tarefa do Supremo Tribunal Federal modificar uma lei expressa na Constituição Federal de 1988, e sim do Congresso Nacional. Configura-se crime o aborto, e por isso não se pode alterar o dispositivo que alega isso, a não ser que o poder legislativo tenha esse desejo. Segundo Bourdieu, a classe dominante impõe seus ideais como se fosse natural (naturalização) e, portanto, pode até transformar um ato ilícito em lícito.
 Desta mesma forma procede o voto do ministro Cezar Peluso, que afirma que se há morte, é porque houve vida, portanto, o aborto é um crime. Além disso, ele alega que a Constituição não pode ser alterada pelo Supremo Tribunal Federal, pois essa ação se caracterizaria como uma usurpação de poderes.
Por conseguinte, é de suma importância perceber que, sejam a favor ou sejam contra, os ideais de Bourdieu servem de argumento para ambos posicionamentos, já que, por ser um assunto de muitas divergências, considera-se difícil que todos os direitos fundamentais seja atendidos ao mesmo tempo.

       Julia Pontelli Capaldi, Turma XXXVI de Direito Noturno.

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