domingo, 18 de agosto de 2019

A ADPF 54: UMA ABORDAGEM BOURDIEUSIANA


A  Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF) levada até o Supremo Tribunal Federal no ano de 2012 tratou de um tema controverso, o aborto em caso de gravidez de feto anencéfalo.O requerimento da ação se deu através do  Conselho Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTs) e teve como Relator o M.Marco Aurélio. Os Ministros após intensas deliberações chegam ao acordom por 8 votos a 2 determinando como procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Antes de engendrar-se um veredito foram expressos posicionamentos antagônicos por parte dos Ministros, de representantes de grupos religiosos, grupos pró vida, defensores de Direitos Humanos e dos direitos das mulheres. Demonstra-se nisso as divergências que permeiam os Campos distintos da sociedade e que se faz presente também dentro do Campo Jurídico.  Desta dinâmica surge uma dialética que se expressa na sentença final do Magistrado que a profere como uma vontade Universal que,  de acordo com Bourdieu engendra ao mesmo tempo razão e ética:

“O veredicto judicial, compromisso político entre exigências inconciliáveis que se apresenta como uma síntese lógica entre teses antagonistas, condensa toda a ambiguidade do campo jurídico.”.
“Participando (referindo-se ao campo jurídico) ao mesmo tempo da lógica positivada ciência e da lógica normativa da moral[...] reconhecimento por uma necessidade simultaneamente lógica e ética.”. (Bourdieu, pg 213.O Poder Simbólico)

Durante todo processo foi discutido se o feto anencéfalo possui vida ou trata-se de um natimorto. Para determinada vertente do direito a vida pressupõe atividade cerebral que permita a sobrevivência extrauterina; no caso da anencefalia essa patologia é totalmente incompatível com a vida e o feto morre algumas horas após o parto ou mesmo antes. Em contraposição existe a teoria concepcionista que atribui  existência de vida a partir da concepção embrionária,  de acordo com essa hipótese a interrupção da gravidez de feto anencéfalo configura aborto e portanto deve ser recriminada. Porém essa teoria exclui o aspecto de que o feto anencéfalo nunca será uma pessoa, ele não possui o potencial para tornar-se pessoa dotada de personalidade, portanto, continuar com a gestação causaria sofrimentos a mãe  de modo que proibir  a mulher de decidir sobre seu próprio corpo e saúde seria uma espécie de tortura.
Como futuros juristas e cientistas sociais devemo nos indagar se cabe a nós decidir  quando a vida se inicia, acredito não ser suficientemente autônoma a ciência jurídica do modo como propôs Kelsen, para conseguir de maneira exclusiva determinar  conceitos tão complexos como a vida. Bourdieu já nos alertava a esse respeito contestando essa autonomia absoluta do direito. Pierre Bourdieu em sua obra “O Poder Simbólico” realiza , uma crítica a teoria de Hans Kelsen e seus seguidores- incluindo Luhmann- ao afirmar que o direito sofre ingerências e pressões sociais . 
No presente Julgado fica evidente essa autonomia relativa do direito, apesar dos agentes e instituições jurídicas tentarem abranger o problema partindo principalmente das normas presentes no Código Civil, Código Processual Civil e Código Penal existe a necessidade de recorrer e ouvir também  outras áreas da sociedade, a exemplo a medicina e religião. Tal comunicação e até mesmo apropriação do que  Bourdieu classifica como Capital social -que provem de um determinado Campo- ocorre em prol de buscar uma solução equilibrada e firmar uma decisão para o conflito, decisão essa que constitua um reflexo dos interesses públicos. 
Deste modo, a interpretação dos Ministros e do Magistrado não foi parcial, mas neutra e universal adquirindo um caráter legitimo. Nas palavras de Bourdieu "o verdadeiro responsável pela aplicação do direito não é este ou aquele magistrado singular, mas todo o conjunto dos agentes.", é possível citar ainda a respeito da retorica de universalidade e neutralidade “ Está longe de ser uma simples mascara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico, em especial, do trabalho de racionalização”.

Por ultimo, considerando que o aborto sempre foi um tema polemico e analisando as preposições citadas acima e os interesses/direitos que foram defendidos- autonomia da vontade, liberdade sexual e reprodutiva, saúde, dignidade da pessoa humana, direito a autodeterminação e outros direitos fundamentais da mãe- a resolução adotada pelo Supremo Tribunal Federal de legalizar o procedimento de antecipação terapêutica , deve ser visualizada como um grande avanço do campo jurídico. Ademais, evidencia-se que esse importante acontecimento concretiza uma liberdade que estava sendo negada e demonstra que o direito possui força para atender demandas sociais de emancipação e, ao contrário do que o debate não cientifico a respeito do direito assegura, ele não se resume ao formalismo e instrumentalismo, que faz do direito uma ferramenta dos dominantes. 

Lívia Alves Aguiar  1º direito (matutino)

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