domingo, 1 de julho de 2018

Um semblante ausente: a busca pela justiça e a função social da propriedade

A ingressão da perspectiva da justiça sob o direito na sociedade deriva diversas complexidades plurais e autênticas às figurações históricas. A integração de uma construção sociológica ao direito desenvolve-se a entender não apenas um objeto isolado — a ordem e a sociedade — mas a contemplá-los criticamente em uma razão simultânea. O dispor das possibilidades históricas, no entanto, não relativiza-se mediante às variedades do direito; a parte que o processo que garante o ser humano como ser social inscreve-se distintamente ao tempo ao qual se insere. 

Ao longo da história, mobilizações e protestos representam convergências de indignação, dada a coexistência de duas elementaridades na sociedade: o que julga-se justo para certo grupo e o que se mantém vigente, à disposições de dominância, por outro grupo. O modelo afirmativo dos movimentos sociais contemporâneos desafia o status quo, utilizando discursos de indignação considerados, muitas vezes, ilegais. A permissão ao direito e justiça, entretanto, garante aos movimentos uma maior substanciação de suas propostas, garantindo parcialmente a conclusão de seus interesses em contraposição aos das classes dominantes. 

A exemplo deste desenvolvimento prático da lei a favor dos grupos excluídos, pode-se citar a função social da propriedade. À parte em que considera-se uma limitação a própria propriedade privada, ressoa, quando vista em uma angulação a vislumbrar primeiramente direitos fundamentais da própria vida, como justiça aos necessitados. Este fator coexiste desde o Estatuto da Terra de 1964, sobrepondo-se em importância maior a partir do art. 186 da Constituição Federal de 1988. A composição liberal das primeiras constituições ocidentais consideravam, juntamente com pressupostos iluministas, a propriedade como incontesta e intocável, sobretudo como o molde engendrante da liberdade. Logo surgiram as críticas do filósofo Jean Jacques Rousseau contra a absolutização da propriedade; o mesmo observava, através do contratualismo, uma justaposição da benevolência natural, a qual tornava-se cada vez mais obscura pela propriedade como objeto de valor e direito:

O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém”. (ROUSSEAU, 2005)

O desenvolvimento do constitucionalismo consagrou na atualidade um direito que desconecta-se das extremidades liberais, as quais tornavam a propriedade um verdadeiro paradigma. As disposições funcionais garantem uma conclusividade quanto ao coletivo, considerando a equidade e a categórica exposição da justiça, o que sedimenta um eixo guia para a ação do direito em utilidade de grupos subalternos. Especificando as designadas ações, em um exemplo simultâneo da compreensão sociológica do direito e da dinâmica operante de movimentos sociais, contrapõe-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e as distinções do direito por Boaventura de Sousa Santos.

A primeira de suas definições, o direito configurativo, "reflete uma determinada configuração das relações de poder", portanto, o revérbero de suas ações projeta, por exemplo, a concreção de injustiças caso estas relações sejam preconcebidas em injustiças da própria estrutura desigual. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, por diversas vezes, denuncia a grilagem e arbítrios injustos, os quais refletem a consequência injusta ou até mesmo lacunar das leis. 

A segunda definição, o direito reconfigurativo, busca um novo encadeamento entre os poderes, reconfigurando a "correlação de forças na sociedade". Encontra-se este subentendido ao uso contra-hegemônico do direito, porém sua expressão não distingue o embasamento estrutural vigente. Dentre as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, é possível citar a própria busca pela efetivação da função social da propriedade, garantida pela Constituição Federal de 1988, que tem bases democráticas e cidadãs. 

Significativamente, a terceira definição de Boaventura de Sousa Santos, trata do direito prefigurativo. Este, ao contrário do direito do reconfigurativo, lança bases para um novo conjunto de relações de poder distinto do anterior, encontrando-se, portanto, como um anseio fora da estrutura vigente. Desta forma, encontra-se no cerne dos anseios do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a busca pela reforma agrária e por novos padrões estruturais a serem configurados; estas ambições, descritas na história do movimento, são intermediadas pela democracia e pelo direito, os quais embasaram expectativas de um movimento autônomo do governo e de partidos. 

Em 1984, os trabalhadores rurais que protagonizavam essas lutas pela democracia da terra e da sociedade se convergem no 1° Encontro Nacional, em Cascavel, no Paraná. Ali, decidem fundar um movimento camponês nacional, o MST, com três objetivos principais: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país. [...] No cenário político, em 1985 houve a eleição pelo parlamento do presidente da república, uma eleição indireta. Abria-se uma expectativa no quadro político de uma possibilidade da Reforma Agrária, pois não havia, naquela época, um partido político que fizesse seu programa de governo sem citar Reforma Agrária.¹



Referências:
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2005.

¹Trecho retirado de: http://www.mst.org.br/nossa-historia/84-86

SANTOS, Boaventura de Sousa. As Bifurcações da Ordem: Revolução, Cidade, Campo e
Indignação. São Paulo: Cortez, 2016. (Cap. 6 – “O MST e as suas estratégias jurídico-políticas
de acesso ao direito e à justiça no Brasil”, p. 305-339; Cap. 7 – “Para uma teoria sociojurídica da
indignação: é possível ocupar o direito?”, p. 343-373)


Marco Antonio Raimondi 
Direito Noturno - Turma XXXV

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