segunda-feira, 2 de julho de 2018

A ocupação do MST: da propriedade e do Direito


      Boaventura de Sousa Santos no capítulo de sua obra intitulado “Para uma Teoria Sociojurídica da Indignação” trará uma reflexão acerca das possibilidades de ocupar o Direito e, assim, transformá-lo em um mecanismo emancipatório e não mais uma forma exclusiva de dominação. E, nessa mesma perspectiva, o Acordão do caso Fazenda Primavera revela uma emancipação ao fazer valer a função social da propriedade, que é um dos princípios fundamentais de nossa Constituição uma vez que está relacionado com a dignidade da pessoa humana.Desta forma, deixa de  seguir uma jurisprudência conservadora que prioriza o direito individual em detrimento do coletivo, desrespeitando, diversas vezes, o inciso  XXIII do artigo 5º de nossa Carta Magna.
       Desta forma, podemos encarar tal decisão como uma maneira de diminuir a dualidade abissal do Direito, representada não apenas pelo pluralismo legal do Direito estatal e do Direto paralelo ou pela divergência entre prática e teoria, mas, principalmente, pela amplitude entre os Direitos dos 99% e do 1%,  denominados também, respectivamente, de Direito dos Opressores e dos Oprimidos.  Esse abismo só pode ser diminuído com a inclusão dessas minorias dentro do direito e com a possibilidade de outras interpretações dentro do próprio campo jurídico, não a fim de rompê-lo, mas sim com finalidade de proporcionar conquistas destes novos grupos. Assim, o reconhecimento da legitimidade da ocupação das terras improdutivas pelo MST  no caso em questão pelo Magistrado demonstra um passo para diminuir tamanha discrepância entre os dois Direitos, passando de um Direito Configurativo para um Reconfigurativo, pois atua na contra-hegemonia com a emancipação dentro da própria forma jurídica.
      Nas palavras de Boaventura, os Direitos Configurativo e Reconfigurativo são, respectivamente, “ um direito que reflete uma determinada configuração das relações de poder. Se estas forem desiguais e destinadas a produzir injustiças e opressão, o direito será igualmente injusto e opressivo” e “é um direito em processo de ser utilizado de modo a alternar as relações de poder e reconfigurar a correlação de forças da sociedade. O direito reconfigurativo é o que está subjacente àquilo que tenho vindo a denominar o uso contra-hegemonico do Direito(...)”. Ou seja, a inviabilização de retomada de posse pelos antigos proprietários das terras da Fazenda Primavera pela negação do agravo de instrumento é uma forma de diminuir as injustiças de nossa sociedade, na qual a desigualdade, não apenas de terra, é nítida e opressora.
      Esse acórdão pode, ainda, representar o Direito Preconfigurativo, que segundo Boaventura  “é um direito expressivo ou performativo,  um direito que expressa, na prática, a antecipação de uma sociedade diferente, baseada num conjunto de relações de poder totalmente distinta”, uma vez que projeta bases para uma nova jurisprudência (caso não seja encarado como um caso isolado) e, assim, lançar bases para uma nova hermenêutica do Direito, voltada para o âmbito social.
      Por fim, o conceito de constitucionalismo transformador expõe que, para romper como status quo do Direito, é necessário um direito constitucional reconfigurativo, ou seja, uma nova democracia para nossa sociedade, que na grande maioria dos casos se abstem das lutas sociais. Seria, pois, necessária maior participação popular para exercer uma pressão “de baixo para cima” a fim de emancipar o Direito através do uso contra-hegemônico. Para tanto, é necessário diminuir as desigualdades inerentes de nosso meio, já que o desequilíbrio de poder gera inoperância de qualquer mudança, e, consequentemente, superar as disparidades do mundo jurídico, levando a uma Ecologia dos Saberes, que se conceitua como a convivência harmônica de diferentes discursos ao romper com a legitimidade de um saber monolítico e buscar outras concepções acerca de legalidade, para além de um Direito exclusivamente formal.
      Portanto, a decisão do julgado Fazenda Primavera vai de encontro com a ocupação do Direito proposta por Boaventura, uma vez que reconfigurou o direito até então existente para diminuir o abismo entre os Direitos dos Opressores e dos Oprimidos, sendo estes últimos representados, neste caso, pelo MST, um movimento que podem ser equiparado às “revoltas da indignação”, já que ambas  reinvindicações  são pelo fim das injustiças e desigualdades e contra a privação de um grupo de sua dignidade humana básica, que pode ser representada pelo direito de uma propriedade com existência de sua função social. Desta maneira, faz-se uma interlocução com o direito hegemônico para interpelar o direito legal com novas interpretações, segundo as novas narrativas, sem romper com o que fato o Direito é, mas proporcionando conquista aos oprimidos, e assim, aceitar novas visões para o ordenamento jurídico, formando uma Ecologia de Saberes em detrimento de uma visão exclusiva dos dominadores.
 Alice Maria Silva Pires, Direito Noturno

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