domingo, 10 de junho de 2018

Uma análise do "campo dos possíveis": a luta simbólica no campo jurídico nos estudos de Bourdieu

    O ordenamento jurídico brasileiro por vezes é confrontado com questões polêmicas que possuem diferentes sentidos e valores quando analisadas à luz de determinados setores da sociedade; a descriminalização do aborto de anencéfalos é uma delas. Envolvendo a moral da sociedade, os costumes e diretamente saúde pública, não à toa o Judiciário brasileiro mais uma vez toma a frente da situação, com o objetivo de acelerar um processo de decisão sobre a constitucionalidade da matéria, tentando solucionar um problema que não se move nas mãos do inerte Legislativo. Uma análise cautelosa e técnica do assunto nos permite perceber a urgência da decisão do Supremo Tribunal Federal, que acabou responsável por, ao menos em teoria, salvar vidas de mulheres que diariamente morreriam sem o amparo legal para seu sofrimento. 
    Para uma análise coerente quanto ao aborto de anencéfalos baseada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, onde o STF decidiu favoravelmente à descriminalização da interrupção da gravidez em casos de anencefalia comprovada, é necessário entender o panorama social que compunha e ainda compõe a sociedade brasileira. A descriminalização é o caminho óbvio e certeiro a ser tomado, visto que permite principalmente a escolha da mulher sobre seu próprio corpo, sobre seguir ou não com uma gravidez infrutífera. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, encabeçada pela Universidade de Brasília, uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já havia realizado pelo menos um aborto até o ano de 2016, e cerca de 250 mil são internadas anualmente com complicações referentes ao procedimento de interrupção inseguro a que se submetem. Quando o Estado não oferece o respaldo e os meios legais para que a mulher decida sobre seu próprio corpo, é diretamente responsável por esse panorama cruel. Na própria área médica, não se entende a questão em destaque como aborto, mas sim como antecipação terapêutica do parto, visto que não há vida cerebral no feto; o ordenamento jurídico brasileiro em sua área civil deixa claro que há morte quando há interrupção da atividade cerebral. É exatamente por contestar essa realidade irracional de criminalizar tal ato que o Conselho Nacional dos Trabalhadores de Saúde recorreu ao STF através da ADPF 54, buscando alterar o entendimento legal da matéria em questão. Sob à luz de Pierre Bourdieu e seus estudos quanto à ciência jurídica, é possível compreender a relação jurídica dualística que se forma entre as partes no que ele chama de "dupla lógica do campo jurídico". 
    O que Bourdieu retrata como o "campo dos possíveis", ao analisar o limite que existe para a atividade hermenêutica, é passível de observação prática quando se trata de um processo jurídico institucionalizado, e não somente um debate moral e puramente filosófico. É através do respeito à hierarquia do próprio campo jurídico brasileiro que ocorre o embate entre as partes, não havendo uma discrepância no modo de atuação: leva-se o assunto para o campo jurídico e nele ocorre as sustentações racionais, de caráter universal e supostamente neutro, dentro da medida do possível. É nesse sentido que se observa os conflitos sociais em busca de equidade, baseados na apropriação de força simbólica através de diferentes interpretações legais. 
    Trata-se, portanto, da validade expressa na linguagem jurídica de levar a luta social ao campo jurídico de maneira universal e neutra, para que haja um afastamento definitivo de pura pressão social, bem como de pura inércia em uma suposta autonomia absoluta do direito por si só. Quando se analisa o caso da interrupção da gravidez em casos de anencefalia, é possível observar que só se obteve o resultado a partir do momento em que se obedece os pressupostos do direito para Bourdieu. Daí a crítica que o próprio autor tece a Kelsen e Marx, ao dizer a impossibilidade de se adotar uma reivindicação puramente isolada do direito ou um sistema de rompimento com a estrutura do direito, respectivamente. 
     Fato é que, como operadores e doutrinadores do direito, segundo a definição do autor em análise, o colegiado de magistrados do STF fora capaz de aplicar o poder simbólico a eles embutido como figura máxima de decisão do ordenamento jurídico, inserindo princípios de eficácia para a sociedade. Respeitar o princípio da dignidade humana, da vida e saúde da mãe, do poder de decisão individual autônoma é dever do direito, e decidir pela descriminalização da interrupção da gravidez em casos de anencefalia é a eficácia adentrando o "campo dos possíveis". 

Pedro Henrique Dinat Labone - Turma XXXV, Diurno
    

Nenhum comentário:

Postar um comentário