domingo, 10 de junho de 2018

A problemática do aborto de anencéfalo


   A descriminalização do aborto de anencéfalos, apesar de já possuir respaldo jurisprudencial, ainda gera muita discussão entre leigos e até especialistas no assunto, seja tratado no âmbito científico ou jurídico. O grande problema se revela na nossa Constituição, a qual não trata especificamente desses casos, abrindo margem então para interpretações divergentes. Como é observado, há uma parcela considerável da população que repudia o aborto por motivos religiosos e morais, embora não conheça as especificidades do nosso código jurídico a respeito desse assunto. Não obstante, mesmo aqueles que detêm de grande conhecimento jurídico e biológico não entram em consenso quando se é colocado em pauta tal questão. Isso se deve aos diferentes recursos utilizados e considerados na formulação das suas opiniões, possibilitando assim discursos diametralmente opostos embora possuam matriz comum. À luz de Bourdieu, tal fato ocorre pela existência de uma lógica duplamente determinada, a qual traz alta carga valorativa em todos os argumentos trazidos ao debate, justamente por possuírem respaldo legal. A Constituição é formada por numerosos artigos objetivos, os quais estabilizam limites às suas interpretações, todavia alguns são caracterizados como subjetivos, abrindo margem para a adequação de diferentes idéias. Tal fato caracteriza a hermenêutica proporcionada pelo direito, que é responsável pela existência dessas inconstâncias, gerando em alguns casos até mesmo um paradoxo, como é visto nesse em questão.
   Tendo como base a análise de Bourdieu, o Direito atua como “molde”, tendo esse modelo um caráter muito especial. Para melhor compreensão, utilizar-me-ei de uma analogia: Na época Colonial do Brasil, especificamente no período da mineração, existiam as Casas de Fundição as quais eram responsáveis pela purificação, cunho e cobrança de impostos do ouro extraídos. Dessa forma era feita a legalização do ouro, somente era válido aquele que estivesse em barra, com o selo das casas de fundição e, por conseguinte, “quintado” (nome advindo do pagamento do “quinto”, imposto cobrado na época). É justamente essa a idéia presente no estudo de Bourdieu, o qual afirma que para as idéias adquirirem valor legal e axiológico, além de corresponderem com a moral de seu momento, devem atuar mediante o aparato normativo, ou seja, devem usar dos recursos promovidos e permitidos pela própria lei, entrando dessa forma nos “moldes prepostos”. Ainda utilizando dessa analogia, muitas vezes é necessário tirar parte das idéias “brutas”, assim como é retirado o quinto, para que essas consigam encaixar-se nos ditames da nossa legislação. Desse modo, levar o debate para o ambiente jurídico traz força, valoração e peso para aquilo que antes não detinha desse poder, há assim a transformação de idéias em argumentos, a fuga da individualidade para a legalidade, reconhecimento e aceitabilidade do campo jurídico e, por conseqüência, dos demais campos.
   Á guisa de conclusão, o estudioso utilizado para a compreensão do assunto se revela muito complexo e relevante, visto que a partir dele que consegue se chegar ao entendimento do fenômeno ocasionado pelo debate acerca do abordo de anencéfalos. Tanto a argumentação pró-aborto de anencéfalos, quanto contra tal ato possuem grande consistência por estarem efetivadas no “espaço dos possíveis” (como o autor se refere ao campo jurídico). Sendo assim, o que deve ser levado em consideração nesta discussão acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal não é a validade do discurso, mas sim a efetividade, há de distanciar-se da normatividade pura para a análise e compreensão da eficácia, da real necessidade tida principalmente pelas mulheres que sofrem por essa indecisão. Só dessa forma poderemos chegar à conformidade, possibilitando assim a melhora e o desenvolvimento tão necessários nessa área escandalosa.

   Iago Gasparino Fernandes                                             Direito Matutino XXXV

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