domingo, 13 de maio de 2018

Consoante o geógrafo Milton Santos, “o simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos”. Todavia, ao se analisar o atual panorama da sociedade brasileira, nota-se que essa verdade, proferida por Santos, nem sempre caracteriza a realidade, haja vista que muitos “cidadãos de papel” enfrentam desafios no pleno exercício de suas dignidades, como a ausência de terras para a sedentarização (necessidade humana básica, desde os primórdios do Neolítico). É o caso das famílias ocupantes do Pinheirinho, terreno localizado em São José dos Campos, tido como propriedade da massa falida Selecta.
Não obstante o exercício da função social do terreno ao longo de oito anos, por aproximadamente seis mil pessoas, em 2012 a Selecta pleiteou a reintegração de posse da propriedade, ação que Max Weber caracterizaria como “racional com relação a um objetivo”, já que essa massa falida usufruiu do “status quo” jurídico para alcançar determinado fim. Segundo as ideias desse mesmo sociólogo, o ato da Selecta, pertencente a uma lógica meramente mercantil, exemplifica a tendência de particularização do direito pela burguesia na modernidade, já que exige que seus direitos sejam avaliados por personalidades específicas.
No final do processo, a reintegração de posse foi conquistada pela massa falida, apesar de seu não pagamento de IPTU, o que por si mesmo já justificaria a presunção absoluta de abandono da propriedade, segundo o artigo 1276 do Código Civil. A violência policial, que contou com uma enorme tropa militar e destruiu inúmeros móveis dos moradores, já demonstra a concretização do desejo burguês de rapidez da justiça mercantil, abordado por Weber nessa mesma tendência de particularização do direito, quadro em que, infelizmente, o princípio da dignidade da pessoa humana não foi sobreposto ao da propriedade privada, se considerarmos o Diálogo das Fontes de Erick Jayme. Torna-se claro, ainda, o rompimento com fundamentos do comércio primitivo citado pelo sociólogo, já que, diferentemente da Antiguidade, em que a propriedade da terra era vinculada ao pertencimento a uma associação, agora ela é mero produto de contratos, o que justifica, inclusive, seu estado de abandono visto em 2004, antes da consolidação do bairro Pinheirinho.
Pode-se inferir, por conseguinte, que a juíza responsável por tal decisão vantajosa à Selecta, Márcia Loureiro, usufruiu da racionalidade do direito, ao aplicar abstrações do sistema jurídico, hierárquico e burocrático (formal), em um fato concreto (material). Todavia, não considerou possíveis consequências desastrosas que tal ato provocaria nos respectivos contextos familiares do Pinheirinho (racionalidade material), de forma a contrariar o artigo 24, do Código de Ética da Magistratura.
Logo, pode-se caracterizar o julgado do Pinheirinho como mais um exemplo de ratificação de desigualdades sociais pelo direito no Brasil, em um anacronismo de políticas como a concessão de sesmarias no Governo Geral e a Lei de Terras no Segundo Reinado. Em todos os casos, o acesso à terra, fundamental ao exercício da dignidade da pessoa humana de fato, foi dificultado aos populares, em contradição à teoria da “Constituição Cidadã”, de 1988.

Giovana Fujiwara - Direito Diurno XXXV 

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