domingo, 26 de novembro de 2017

Transformação social e o direito

    A visão formalista do direito o concebe como um sistema totalmente autônomo em relação ao âmbito social, constituído por doutrinas e normas independentes dos constrangimentos e pressões sociais, com base em uma dinâmica interna em que o campo jurídico se transforma conforme suas próprias e assegurando coerência através da constância, previsibilidade e homogeneidade dos habitus jurídicos.
    No entanto, essa constatação contradiz um dos objetivo fundamentais do direito, que é regular as relações existente na sociedade, estando entre elas, as sociais. A autonomia do raciocínio jurídico implica constância, porém a própria Constituição brasileira reconhece a necessidade de acompanhar as transformações sociais ao conter em seu texto um procedimento para sua alteração e também dispor sobre como proceder para alterar leis inferiores. Tem-se como exemplo do caráter dinâmico da sociedade o fato de que a evolução científica possibilitou a identificação de feto anencéfalo, hipótese não abrangida pelo Código Penal pois era desconhecida na época de sua compilação, o que levou a questão à deliberação do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto do feto com a característica retratada devido à ausência de vida-extrauterina potencial, em defesa do princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade da mulher, diante do dever jurídico de proteger a saúde física e mental da mãe. Destaca-se que a decisão do tribunal acompanhou a determinação da medicina de que o feto anencéfalo é natimorto cerebral. Além disso, uma doutrina independente do meio social privilegia lutas individuais. Dessa forma, é inconcebível a separação do direito do mundo social e sua relação com outras ciências.
    A hierarquização das instâncias judiciais e seus poderes culmina na hierarquização de suas decisões e das normas em que elas se fundamentam. Assim, a decisão do STF tem efeito vinculante e atinge a todos. Esse fato possibilita solucionar conflitos entre intérpretes e interpretações. A respeito da interpretação, afirma-se sua função adaptativa e destaca-se sua utilização como meio de explorar a polissemia e anfibologia jurídica através da restrictio, extensio, ambiguidade, analogia e lacuna, como é o caso do exemplo citado.
    Outro ponto importante é o sentimento de injustiça. A sensibilidade e a capacidade de percebe-lo não é distribuído uniformemente e depende estritamente da posição ocupada no espaço social. No aborto de feto anecéfalo, não se discute apenas a existência de vida, mas também a função da mulher como progenitora e defensora da família, visão ligada ao conservadorismo e à religião.
    A questão levada ao STF é um exemplo de judicialização pois o tribunal acrescentou nova modalidade que exclui a hipótese de crime de aborto, atuando como legislador positivo, que seria função do Congresso Nacional por meio de lei. O alcance da ação jurídica depende da posição do campo jurídico no campo do poder, e sua ampliação decorre do desprestígio e do descrédito que assola o poder legislativo.
    O fato de que um problema social foi levado ao poder judiciário para ser solucionado demonstra a forte ligação entre o direito e o mundo social, mostrando que o formalismo e a autonomia absoluta é uma idealização.

Eloáh Ferreira Miguel Gomes da Costa
Direito-matutino
    

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