sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A autonomia do direito em debate

Em 2012, houve uma intensa discussão no Supremo Tribunal Federal acerca da descriminalização do aborto para fetos portadores de anencefalia. A doença em questão se caracteriza por ser uma má formação do tubo neural durante o desenvolvimento embrionário que resulta na inexistência parcial ou total do cérebro, bem como do cerebelo, meninges e entre outros órgãos fundamentais para a evolução e desenvolvimento humano. Devido a anencefalia apresentar um índice comprovado de 100% de óbito para todos os casos analisados, a decisão do órgão em questão foi favorável à realização do procedimento abortivo para tal caso, passando a ser possível portanto que todas as mulheres que deveras tenham fetos anencéfalos e que queiram abortar, façam a intervenção através do Sistema Único de Saúde (SUS).
De fato, o parecer procedente do STF levantou intensos debates na sociedade brasileira, sendo inúmeros os posicionamentos favoráveis e desfavoráveis a tal deliberação. De um lado, parcela significativa da população se opunha baseando-se em argumentos religiosos, alegando que todos os seres vivos seriam criação de uma divindade superior, sendo assim inadmissível cogitar um procedimento abortivo; bem como em argumentos focados nos direitos fundamentais do feto, destacando-se dentre eles o direito à vida, o qual necessariamente existiria desde o princípio. Além disso, muitos alegaram a existência de alguns raros casos em que o feto conseguiu sobreviver por até um ano e oito meses, contrapondo-se dessa forma a previsão médica de morte instantânea após o parto.
Por outro lado, expressiva quantidade da população se mostrou simpatizante à decisão do STF, muitos defendendo até mesmo a admissibilidade do aborto para todos os casos de gravidez existentes. De fato, a decisão mais plausível na atual conjuntura do século XXI é que ocorra a legalização do aborto, principalmente para casos como o analisado. O poder de escolha entre perpetuar a gravidez ou decidir interrompê-la deve caber à mãe, e à ela apenas. Inúmeros são os impactos psicológicos e físicos que uma mulher enfrenta durante o período de gestação, sendo que estes são infinitamente amplificados e intensificados quando se descobre que o feto é portador de anecefalia.
O prestigiado sociólogo francês Pierre Bourdieu afirma que é fundamental que o direito imponha-se como uma ciência que aja de forma autônoma, evitando o seu serviço em prol das classes dominantes, bem como conforme a pressão exercida e empregada pelas massas. Assim, em questões de grande comoção social, tal como o aborto em casos de anencefalia, cabe à ciência jurídica assumir seu papel autônomo e decidir de acordo com o bem estar de quem de fato interessa, que são as mães.

A perspectiva de forçar uma mulher a gerar um filho que jamais ultrapassará os anos iniciais de vida é absurda por si só. Desse modo, cabe aos órgãos de máxima expressão do poder, como o Supremo Tribunal Federal, decidir racionalmente acerca de assuntos como o exposto, fazendo uso, portanto, da premissa pregada por Bourdieu de que direito é ciência e ética. Logo, deve decidir conforme uma discussão racional e não se deixar influenciar pelas emoções do grande público.

Ester Segalla dos Passos - Direito (noturno)

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