segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Letra morta, terra arrasada

Um episódio emblemático na história recente brasileira foi o Massacre do Pinheirinho. Ocorrido em 2012, foi o marco do momento em que milhares de moradores foram violentamente retirados com forte aparato militar da comunidade onde viviam e que haviam construído ao longo de mais uma década em nome de uma ação da massa falida da empresa Selecta S.A.

Não é preciso muito para que o episódio nos remeta a inúmeras questões da sociedade brasileira, dentre elas a desigualdade social, o déficit habitacional, a violência do Estado em reintegrações de posse e a influência do empresariado nas decisões governamentais e judiciais. Todas essas questões são há décadas estudadas por filósofos, sociólogos e cientistas políticos, além de debatidas em inúmeras instâncias, como nos meios de comunicação e nos palanques eleitorais em período de campanha. Entretanto, no momento da reintegração do Pinheirinho, todas esses debates, inflexões e ideias não foram suficientes. A comunidade foi removida, graves violações aos direitos humanos ocorreram e dois cidadãos morreram.

Assim, retoma-se o debate da função de determinadas áreas do pensamento na atualidade, como a Filosofia. Seriam elas meros instrumentos de construção e transmissão de ideais ou deveriam ter como fim a transformação da realidade em que se vive? Reflexão importante faz Karl Marx em sua “Para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, de 1843, onde ele rompe com o radical idealismo hegeliano e traz a noção de que a Filosofia deve ser utilizada como forma de compreensão da realidade prática e, por consequência, de emancipação política da sociedade.

Tal concepção pode ser perfeitamente aplicada ao caso do Pinheirinho. O “aprisionamento” político da sociedade – construído principalmente pelas diversas formas de alienação –, que permite que a mesma seja oprimida pelo Estado em que se encontra, muito provavelmente impediu que o cidadão que acompanhava há dias a transmissão dos grandes meios de comunicação da situação da comunidade (como mostram vários documentários sobre o tema) conseguisse enxergar a situação como uma problemática social muito maior do que somente “mais uma ocupação de terras”. Caso essa percepção tivesse ocorrido – e as áreas do conhecimento mencionadas anteriormente, na visão marxista, deveriam ter tido uma forma de esforço nesse sentido -, poderia haver uma pressão social muito forte que impedisse os magistrados que trabalhavam no caso de tomarem a atitude de mais uma vez optar pela repressão física dos socialmente mais fracos, gerando severas e inadmissíveis agressões.

Além disso, a ausência de conhecimento profundo sobre os aspectos que envolvem o nosso Estado e legitimam a sua atuação, como o Direito, autorizou a ocorrência de inúmeras arbitrariedades legais por parte dos juristas envolvidos em todas as instâncias do caso. Um “esclarecimento” acerca das leis e dos processos que nos cercam poderia ocasionar, mais uma vez, uma pressão social prática que coibisse a parcialidade do trâmite do processo e o esforço dos juristas em prol do empresariado, da concentração fundiária e da especulação imobiliária.

Em síntese, é evidente que caso as várias formas de conhecimento que nos cercam tivessem se valido de, ao invés de simplesmente incitar o debate sobre determinadas questões, buscar emancipar politicamente a sociedade por meio do esclarecimento acerca de como age o Estado e assim constituir uma revolução social que extinguisse as formas de opressão, o desfecho do Massacre de Pinheiro talvez fosse bastante diferente, uma vez que a resistência dos moradores da comunidade não teria sido a mesma com um amplo apoio popular e governamental, além da pressão para o estabelecimento de mecanismos que impedissem a opressão e a letargia institucional que muitas vezes acompanha complexas questões sociais.

Dessa maneira, enquanto não nos utilizemos de todo o aparato intelectual que possuirmos para o entendimento das formas de opressão que nos rodeiam e de como podemos agir para eliminá-las, estaremos fatalmente condenados à submissão, apoiada pelo Estado e seus instrumentos, aos interesses elitistas. Na letra da lei, ou fora dela; à força, ou sem ela; estaremos fatalmente condenados.

Luiz Antonio Martins Cambuhy Júnior

Direito Matutino – 1º Ano

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