sábado, 22 de outubro de 2016

Entre a "doença" e a dignidade



“Acho que toquei num nervo social muito importante, a liberdade. A liberdade social e de orientação de gênero, que são coisas muito caras e relativamente recentes. Existe um passado de estigma. Vivemos um momento em que a homossexualidade não é considerada um crime, mas ao mesmo tempo é vista como pecado e doença.” – Laerte Coutinho.

     Esses e outros paradigmas e antíteses cercam a transexualidade, envolta de pré-conceitos e repressões por parte da sociedade. Assim, o indivíduo transexual, em geral, não é acolhido pela família, pela religião, pela escola, pelo ambiente profissional e é renegado, até mesmo, pelo movimento LGBT.

      Tal inadequação social, além da tentativa frustrada em encaixar-se nos padrões impostos pela sociedade heteronormativa, culmina em variados sofrimentos para a pessoa transexual: são vistos, muitas vezes, como Laerte afirmou, como doentes, portadores de um transtorno; ademais, passam por diversos constrangimentos cotidianamente; por fim, sentem-se mal consigo mesmo, resultando em problemas de saúde, como a depressão, e podendo, também, levar ao suicídio.

        Essa é a história de XXXXXXXX, mulher transexual, que se submete, há 12 anos, a tratamentos psicológicos, psiquiátricos – “Há muitos anos, vem-se submetendo a tratamentos psicológicos e psiquiátricos, cujas conclusões são no sentido de que a parte-autora está segura quanto à realização da cirurgia de mudança de sexo. Os laudos psicológicos e atestados psiquiátricos dão conta de que essa situação tem dado ensejo a dores psicológicas e sofrimentos mentais, com sintomas depressivos, daí a recomendação para a referida cirurgia” -, além de fazer tratamento hormonal desde os seus 15 anos e de ser acompanhada por outros médicos, os quais indicam que ela está pronta para fazer a cirurgia de mudança de sexo, bem como para mudar seu nome e seu sexo no Registro Civil – isto seria de enorme contribuição para evitar constrangimentos diante das pessoas, as quais fazem perguntas desconfortantes em relação ao fato de a transexual ter traços femininos, porém apresentar um “nome masculino”.

        Ela pleiteou a cirurgia de mudança de sexo com financiamento pelo SUS, a mudança do prenome e do sexo no registro civil. Tal cirurgia é, inclusive, recomendada por seus médicos, devido aos enormes sofrimentos e, também, porque tal procedimento é visto como uma solução para o “transtorno”, já que a transexualidade é ainda considerada por muitos uma doença.


Assim, com base nos direitos constitucionais à vida, à dignidade da pessoa humana, à igualdade e à liberdade, bem como no art. 13, CC - “O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil” - e na jurisprudência, o seu pedido foi deferido em primeira instância, isto é, decidiu-se pela tutela antecipada.

       Essa decisão foi sabiamente tomada, levando-se em conta que, segundo Weber, deve-se prezar pela autonomia do indivíduo em relação ao seu nome e ao seu corpo. Ademais, tal sentença também concorda com Weber na medida em que este enfatiza que não há um direito puramente formal: a ciência jurídica abrange tanto o direito formal quanto o direito material. Ou seja, é uma ciência que não deve basear-se apenas na racionalidade, e é necessário causar rupturas para criar novos direitos – isso é a “dinâmica revolucionária” weberiana.

        No entanto, a sentença foi negada em segunda instância, o que, para Weber, nada mais é do que o resultado da manipulação do direito feita pelas classes privilegiadas – e heteronormativas, sob o argumento de que é preciso uma racionalidade jurídica e formal –, as quais, com seus preconceitos enraizados, contribuem tão somente para maiores atitudes repressivas e para a má qualidade de vida ou, até mesmo, para suicídios de tantos transexuais.

   
Nathalia Neves Escher - 1º ano de Direito (noturno).

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