segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A dinâmica revolucionária de Weber e os direitos humanos fundamentais

Numa sociedade preconceituosa como a nossa, em que os padrões simbólicos de gênero acarretam a exclusão social de todos aqueles que não se enquadram nessas normas, a vida dos transexuais é marcada pelo sofrimento e pela completa marginalização. Ao contrário do que afirma a medicina, o transexualismo não é uma patologia, e sim, um modo de ser. Os transtornos que o acompanham não são característicos de uma doença, pelo contrário, decorrem do meio social, dos padrões impostos e do preconceito. Neste contexto, o caso do transexual que pleiteia, perante o Judiciário, o provimento da cirurgia de mudança de sexo pelo Estado, bem como a alteração do nome e do gênero no registro civil, é passível de divergências. Seria dever do Estado amparar o indivíduo nessas circunstâncias? É razoável que o Estado ofereça tutela ao sofrimento subjetivo individual?
Correlacionando com a teoria weberiana, o Direito, marcado pela dinâmica conflituosa entre o formal e o material, tem suas leis elaboradas de acordo com as pretensões materiais da classe dominante, da maioria. Há, dessa forma, uma padronização segundo os ideais da elite, motivo pelo qual a forma do Direito alcança somente a heterossexualidade. Ademais, a racionalização do Direito supõe que as disposições jurídicas devem ser gerais, capazes de abranger todos os fatos concretos segundo uma lógica racional. Razoável, portanto, seria seguir estritamente a forma da lei, ignorando a realidade material, ainda que isso cause injustiças. No capitalismo, o "razoável" é determinado pelo mercado, pelo poder econômico, fazendo com que as questões financeiras e fiscais do Estado se sobreponham, muitas vezes, aos direitos sociais.
Contrariando esse Direito puramente formal, no entanto, há uma dinâmica revolucionária, segundo a qual as classes não-dominantes se revoltam contra a ordem imposta e buscam legitimar a criação de novos direitos. Isso ocorre, principalmente, porque sempre existem lacunas no sistema formal, incapaz de abranger todas as pretensões materiais dos grupos sociais. A pressão exercida pelos interesses de grupos minoritários, como no caso desse transexual, debilitam o formalismo jurídico, impulsionando a mudança da forma, a transição do direito formal para o material, utilitário. Apesar de não existir uma norma que determine que o Estado tem o dever de oferecer cirurgia de mudança de sexo, o juiz de primeira instância evoca direitos fundamentais, como o direito à identidade, à liberdade, à igualdade e à dignidade para legitimar a procedência da demanda do transexual.  Uma vez que o pluralismo é fundamento do Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais requerem ações estatais positivas para sua eficácia, é justo que esse indivíduo excluído socialmente seja incluído na tutela de direitos humanos. 

O direito material, neste contexto, pode ir além da forma expressa, sendo justificado por princípios constitucionais e, principalmente, pelo princípio da dignidade da pessoa humana. O deferimento da tutela antecipada, autorizando a cirurgia e a mudança no registro, demonstra que as pretensões materiais existentes na dinâmica revolucionária podem introduzir mudanças significativas no direito formal. Weber já previa isso quando dissertou sobre a impossibilidade de racionalização pura do Direito e a debilitação desse formalismo jurídico por interesses materiais. 
Apesar da necessidade de racionalização econômica, devido aos recursos limitados do Estado, os direitos fundamentais devem ser prioridade num Estado Democrático de Direito, portanto, não só é razoável, como primordial, que se atenda tal demanda subjetiva e particular de um indivíduo vulnerável e marginalizado. A mudança de sexo e do registro civil possibilitará que o trans afirme sua identidade, diminuindo seu sofrimento psicológico e o constrangimento a que é submetido, e permitindo que ele se sinta mais incluído na sociedade. Mesmo que não seja uma cirurgia de urgência, é uma forma de garantir os direitos essenciais dos quais esse indivíduo foi privado por tanto tempo e atenuar os efeitos do grave problema social que representa o preconceito. Afinal, embora todo ser humano seja considerado igual perante a lei, essa igualdade formal, no Brasil, está longe de tornar-se realidade. Alcançar um mínimo de igualdade material requer ações afirmativas do Estado, no intuito de oferecer tratamento prioritário a indivíduos historicamente desamparados. E somente a dinâmica revolucionária, a reivindicação por parte daqueles que não são contemplados pela padronização normativa, é capaz de flexibilizar a forma do Direito e promover uma maior igualdade material.
"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real."(Rui Barbosa) 

Thainara Righeto - Matutino

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