segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O direito e seus símbolos

A ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) promovida a requerimento da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde do Brasil, com o objetivo de obter do Supremo Tribunal Federal a descriminalização do aborto de anencéfalos, ainda que se constitua num procedimento não extraordinário e relativamente banal, pode muito bem servir de base concreta para a demonstração da teoria do poder simbólico de Pierre Bourdieu. De fato, a totalidade de processos envolvidos na resolução do caso em questão – desde a transposição para o “juridiquês” do posicionamento da entidade requerente, até o parecer final do magistrado qualificado – consistem em instituições essencial e intrinsecamente simbólicas, as quais possuem justamente no referido simbolismo o sentido de sua imperatividade e poder.
Em primeiro lugar, a “tradução” do posicionamento concreto e não jurídico para os moldes jurídicos, a fim de que o mesmo possa concorrer para o reconhecimento de sua legitimidade perante o “ponto de vista transcendente [...] que é a visão do Estado” (p. 236), significa uma adequação de uma perspectiva a princípio “vulgar” e incapaz de se impor à sociedade de forma lícita e regular, a um parecer selecionado, formalizado e adaptado à pretensão de racionalidade e universalidade características da ótica jurídica vigente. Isto, com efeito, se dá, no caso da ADPF citada, a partir do momento em que a mera oposição à imputabilidade penal das mulheres que praticaram o aborto tendo em vista serem gestantes de fetos anencéfalos é expressa nos termos de um requerimento à Corte Constitucional para que esta busque uma maior conformidade com preceitos da lei maior ao interpretar o Código Penal e determine a não criminalização do aborto em tais circunstâncias.
O processo de deliberação que antecede o veredicto final, cujos protagonistas por excelência são os advogados das causas – a essa altura juridicamente válidas – das partes, envolve a contraposição de raciocínios argumentativos submissos às regras do jogo jurídico, às “leis escritas e não escritas do campo – […] aquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei” (p. 229). É o que se verifica na ADPF do aborto de anencéfalos levando-se em conta as alegações que, de um lado, defendem a proteção da liberdade individual, da saúde mental da gestante e a incompatibilidade do feto anencéfalo com a situação de vida em termos fisiológicos, a fim de sustentarem sua posição favorável à interrupção da gestação, e que, de outro, afirmam que o feto anencéfalo possui sim vida e que, portanto, a interrupção da gestação caracterizaria o aborto penalmente previsto.
           Por fim, a decisão do juiz consiste em uma proclamação extremamente significativa, visto simbolizar não somente a prevalência de um posicionamento sobre o outro segundo critérios imparciais e tidos, sem serem questionados, por racionais: representa ainda, tal solução judicial, a consagração da ordem já estabelecida e um potencial criador de situações concretas, por assim dizer, a serem contempladas pelo campo jurídico, já deduzíveis e presentes de forma incipiente na realidade sobre a qual trabalha o magistrado. Dessa forma, a conquista da descriminalização do aborto de fetos anencéfalos somente se faz possível e eficaz devido ao fato de que, antes mesmo de ser realizada, tal possibilidade já possuía bases materiais em nossa sociedade que respaldassem sua eficácia.

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