segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Considerações sobre a ADPF nº 54 acerca da gravidez de feto anencéfalo.

Não resta dúvida de que o direto à vida é um dos princípios basilares da humanidade e de que, por esse prisma, o assunto “aborto” é um ponto de muita controvérsia. Mesmo considerando a questão em situações mais restritas, não se foge à polêmica e aos tradicionais argumentos prós e contra a interrupção da gravidez. Isso ocorreu, por exemplo, no caso da ADPF nº 54/DF, que analisou a inconstitucionalidade da interpretação de dispositivos do Código Penal que tipificam como crime o aborto quando se está diante de gestação de feto anencéfalo. Para este caso específico, em 12/04/2012, o Plenário do STF, por maioria de votos e não sem certa discussão, julgou procedente o pedido da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que procurava proteger os profissionais de saúde (que enfrentam essa difícil situação in loco, e se veem obrigados a sopesar diversos aspectos, além dos jurídicos-penais) de eventuais punições impostas pelos tribunais.

O referido julgado é emblemático, pois representa, por um ângulo racional e jurídico, mais uma etapa em um lento processo de expansão do direito no sentido de olhar suas normas e sua produção normativa com uma lente polarizada pela premissa do indivíduo, vivendo situações concretas. Seria possível dizer que se está diante de uma verdadeira expansão do espaço dos possíveis, teorizado por Bourdieu, ou seja, uma ampliação da hermenêutica, de forma a abarcar novas soluções jurídicas. Veja que o Código Penal (cujos artigos 124, 126 e 128 tratam do aborto) é de 1940, e de lá para cá, o campo jurídico tem incluído em sua estrutura novos valores, práticas, discursos, obras jurídicas, enfim, o produto das forças que se desenvolvem nesse campo. Por exemplo, desde 1948 a comunidade internacional reforça o princípio da dignidade da pessoa humana; o desenvolvimento tecnológico tem permitido uma maior precisão nos diagnósticos médicos; a psicologia também tem se aprofundado na compreensão do espírito humano; a liberdade sexual e a melhora da condição social feminina têm tido progressos significativos; a Constituição Federal de 1988 passou a tutelar uma ampla gama de direitos fundamentais.

Todos esses avanços têm fornecido fundamentos importantes para que os agentes do campo jurídico possam construir novos caminhos e novas teses na estrutura do Direito. Contudo, para que se proceda a uma modificação do corpus jurídico, ou seja, para se possa se valer do jogo do poder simbólico para produzir uma alteração do espaço dos possíveis em determinado sentido é preciso atuar de forma eficaz, armando-se o agente de produção doutrinária, de linguagem jurídica correta e atendo-se aos rituais jurídicos. E, nesse sentido, é interessante observar alguns pontos que foram habilmente trabalhados na ADPF nº 54/DF. Primeiramente, nota-se que o advogado da requerente, Luís Roberto Barroso, reconhecidamente um agente de prestígio no Direito Constitucional, procurou afastar de pronto a visão religiosa sobre o assunto, cravando a laicidade do Estado brasileiro. Tratou ele também de delimitar bastante bem o objeto da ação, deixando claro que se pleiteava a declaração de inconstitucionalidade da interpretação que considerava crime a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, e não a constitucionalidade dos aludidos dispositivos penais. Aliás, acentua uma mudança importante de paradigma, colocando em foco, não a questão da interrupção em si, mas a da inviabilidade da vida extra-uterina, conforme doutrina de Nelson Hungria, e reforçando o uso de um termo mais adequado: “antecipação terapêutica do parto”. Trabalhou ainda os princípios da liberdade, da autonomia da vontade, da dignidade da pessoa humana; salientou o direito à saúde e fez o consensual repúdio a qualquer forma de tortura. Sem esse trabalho, bem fundamentado juridicamente, talvez o pleito tivesse outra decisão, o que mostra a dificuldade em se alargar o espaço dos possíveis e, por consequência, promover a própria expansão social.



Fernando – 1º Ano Direito Noturno (texto sobre o Direito entre o instrumentalismo e o formalismo - Bourdieu)

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