segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Mudaram-se as senzalas, mas os senhores permaneceram os mesmos


“Discute-se nessa ADPF que, no Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro [..] a dificuldade decorre da precária situação econômica [...]”(julgado)

“Como bem analisou Marcelo Lopes de Souza, professor da UFRJ: “No Brasil, por outro lado, é comum, em meio a um universo cultural um tanto hipócrita, esquecer ou revelar a cor da pele de um negro ou mulato economicamente bem-sucedido; é o chamado branqueamento cultural, o qual, erroneamente, induz muitos a acreditarem que no nosso país não há racismo, e que a única questão relevante a ser enfrentada, em matéria de (in) justiça social é a da pobreza”. Se não é racismo, só pode ser cegueira.” (artigo de Saullo Diniz)

       Com a introdução da política de cotas raciais no Brasil, uma série de discussões sobre o tema foi lançada, desde a negação da constitucionalidade da medida a até mesmo a afirmação de que no contexto brasileiro não existe racismo, o problema seria de ordem econômica. Baseando-se nesses argumentos, essas medidas apenas piorariam a situação, já que não visam a resolver o verdadeiro problema – a miséria de negros e brancos –, além de acentuarem o culto à diferença em um país onde todos são iguais. Será?
       De fato, a questão da desigualdade material em oposição à igualdade formal é uma das grandes dificuldades que deverá ser enfrentada. Contudo, o negro pobre é duplamente discriminado, afinal o racismo não pergunta a quantidade da renda.  Assim, de acordo com Boaventura, a maximização dos interesses do capital aliada a uma corrosão no contrato social gera uma sociedade excludente; essa minoria, entretanto, não é nem parte desse contrato social, encaixa-se em um pré-contratualismo, ou seja, não teve os seus interesses colocados no contrato social primordial. Além disso, outro ponto abordado por Boaventura é a questão do fascismo social (derivado da crise do contrato social), o qual produz como resultado a valorização do econômico ao invés das políticas públicas, colocando a instabilidade social como condição para a estabilidade econômica. Desse modo, as minorias raciais fariam parte de um Terceiro Mundo Interior, já que a possibilidade de trabalho deixou de ser uma perspectiva realista. Nesse âmbito entram-se as cotas, para fazer frente a esse sistema.
    No que tange a questão do racismo, negar sua existência, como explicitado por Saullo Diniz, é recair na cegueira. A ADPF 186 alega que com a adição da ação afirmativa vários preceitos fundamentais teriam sido violados, como o princípio meritocrático; o direito universal à educação e a dignidade da pessoa humana. Trazendo esses argumentos tão bem forjados para a realidade da população negra, de que maneira o negro pobre tem seu direito a educação respeitado? Como poderia ele competir meritocraticamente se seu ponto de partida é tremendamente desigual? A dignidade da pessoa humana é um preceito de fato valioso, porém, se for utilizada para justificar a ascensão de brancos ao ensino superior e a boas condições de trabalho enquanto o suor dos negros escorre nos trabalhos que lhes são reservados, esse princípio é apenas mais um dentre tantos que são tão belos no papel, mas somente nele.
     Não há dúvida de que o racismo ainda vigora na sociedade atual, e por mais que muitas vezes seja aliado a condições de pobreza, independe delas. Partindo-se dessa premissa, caberia como solução a ação do direito como um instrumento emancipatório, atuando no reconhecimento das diferenças como um complemento na busca pela igualdade; em prol desse ideal, a adoção de cotas traduz-se em um grande avanço. Afinal, enquanto essa discriminação – mesmo que velada – continue a ser institucionalizada, não há como falar no respeito à dignidade humana. Com o passar das décadas, mudaram-se as senzalas, mas os senhores permaneceram os mesmos.


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